9 de novembro de 2010

A CABRA MÁGICA

Era tarde de domingo. O sol de final de Outubro descia o poente lento, gingão e preguiçoso acompanhado de fiapos de nuvens vermelhas, influenciadas pelo reflexo solar, que aquelas alturas do ano se fazem presentes como se anunciassem o final do ano.

A vida na aldeia Heróis do Povo corria sem sobressaltos com a criançada envolvida em brincadeiras diversas no meio de uma paisagem virgem e edénica composta de extensas florestas, lagos, rios, montes e aves migratórias que, de ano em ano, cruzavam o céu dos Heróis do Povo, vindo de terras distantes. Muitas vezes, os mais velhos da aldeia aventavam a possibilidade daquelas aves brancas, imponentes e de pernas delgadas virem de Ntwára ou dos grandes lagos, terras distantes que os antepassados faziam alusão em contos orais e tradicionais. Nesses contos, as aves migratórias eram conferidas proezas incríveis que deixavam os petizes da povoação boquiabertos e desejosos de um dia serem como aquelas aves viajantes e conhecedoras de recantos extraordinários e desconhecidos.

No entanto, ao cair a noite naquele dia, correu na aldeia a notícia inquientante de um fenómeno mágico que sucedia nas povoações vizinhas e que consistia na transformação de humanos em cabritos que imediatamente eram imobilizados, amarrados e levados ao mercado, por homens estranhos, onde eram vendidos para o consumo ou criação. Esta notícia, um tanto quanto, ficcionária poucos acreditavam; Contudo, os poucos que deram crédito ao dito e propalado acrescentavam explicando que esta técnica mágica de enriquecimento ilícito e reprovável na comunidade tinha a sua origem nos países limítrofes, onde os aldeões da região, incluindo os de Heróis do Povo matinham contactos comerciais e sociais. Todavia, a notícia não alterou o curso normal da vida dos aldeões de Heróis do Povo, pois, como prova disso, na manhã seguinte as crianças e os adultos acordaram indiferentes e levaram a vida normalmente.

Naquela manhã de tamanha indiferença, avó Agira e suas amigas Júlia e Maimuna, também anciãs da aldeia, desceram as encostas do monte Pué e internaram-se na floresta em busca de lenha e verduras para a refeição do dia. Enquanto caminhavam em fila indiana, no meio de cánticos de pássaros e do sussurar das árvores, avó Agira, movida pela curiosidade, quís se aclarar junto das amigas:

- Acham que é possível o que ouvi ontem ao anoitecer?

- Acerca dos homens estranhos que transformam os outros em cabritos? – Quis situar-se avó Maimuna.

- Sim.

- Acho que é… - Respondeu Maimuna e acrescentou. – Não há fumo sem fogo.

- Essa estória rezo que não chegue ao nosso povoado. – Disse avó Júlia. – Ontem pensei muito nisso e no final fiquei apavorada.

- É natural que se sintas apavorada, pois, os factos narrados não deixam de ser preocupantes, mesmo que pareçam incríveis. – Observou Maimuna.

- Dizem que em cinco dias quatro homens e três mulheres desapareceram da aldeia Pio-Pio e presume-se que tenham sido vitimas dessa maldita magia. – Informou avó Júlia.

Entretanto, chegaram a um pequeno curso de água, onde deteram-se e Júlia começou a colher verduras em pequenos arbustos de folhas excessivamente esverdeadas, enquanto Maimuna e Agira partiam ramos secos de árvores envelhecidas, amontoando de seguida no chão.

- Mas como funciona a maldita magia? – Interrogou Agira um tanto quanto intrigada.

- Não sei! – Júlia encolheu os ombros e arregalou os olhos em sinal de total desconhecimento do fenómeno.

- Dizem que usam dinheiro. – Explicou vagamente Maimuna preparando-se para atar o seu molho de lenha.

- Só dinheiro? – Agira quis perceber devidamente. – Mas como o dinheiro pode transformar um homem em animal?

- Magia, magia, minha querida. – Limitou-se Maimuna a responder.

- Então o assunto é complicado. – Concluiu Júlia. – Já imagiram o que será da nossa aldeia se tais homens chegarem?

- Será uma lástima! – Agira rematou.

- Lástima porquê? – Indagou alguém entre elas.

- Ainda perguntas? – Inquiriu ironicamente Agira e no final, voltou a questionar com sarcasmo. – Esqueces que as crianças da aldeia são muito obsecadas pelo dinheiro?

- Já chega!– Ordenou Júlia com ar de embaraço como se pensasse em seus netos. - Vamos voltar a aldeia.

- Boa ideia… - Disse Maimuna pedindo Agira com gesto de mão para que lhe colocasse a cabeça o molho de lenha e uma pequena trouxa de verdura.

Dalí, as três anciãs e amigas abandonaram a zona do riacho e em fila indiana partiram ao encontro do carreiro que conduzia a aldeia. A manhã estava fresca. Uma corrente de ar fresco soprava, de quando em vez, do norte para o sul fazendo bailar a vegetação, maioritariamente, seca pelo sol do verão. De longe, levados pelo vento, chegavam sons cristalinos de água em queda livre, chilreios de pássaros e vozes entrecortadas de aldeões que trabalhavam no coração da floresta e dos que se ocupavam em diferentes afazeres na povoação. No entanto, pouco tempo depois, alcançaram o carreiro que conduzia a aldeia e, nisto, reiniciaram a marcha acompanhando-a de conversa sobre os homens da aldeia que, de quando em vez, regavam-a com gargalhadas sinceras e de cortar o fôlego.

Já próximo a aldeia, junto a uma frondosa mangueira, dois homens estranhos atiraram para o chão uma infinidade de notas de dinheiro e ocultaram-se em seguida na floresta que ladeava o carreiro. Um dos homens empunhando uma corda de sisal espreitava entre o capim alto, de tempo em tempo, as mulheres que vinham longe conversando distraidas. Quando aproximaram-se da emboscada, o coração da avó Maimuna palpitou sem reservas obrigando-a a interromper a marcha. Ao aperceber-se da atitude da Maimuna, as amigas pararam questionando em coro:

- O que foi?!

Maimuna fechou os olhos. Respirou fundo e abrindo os olhos sobressaltada, retorquiu:

- Olhem para alí junto à berma do caminho!

Júlia e Agira dirigiram os olhos para o local indicado.

- Meu deus! – Disse Júlia estupefacta. – Não é dinheiro aquilo?

- É. – Maimuna respondeu abanando a cabeça positivamente e com ar de muita desconfiança.

- Mas quem poderia perder tanto dinheiro assim? – Inquiriu Júlia visivelmente interessada em tomá-lo.

- Ninguém, Júlia. – Maimuna retomou a marcha fazendo uma ronda com os olhos em volta da floresta que ladeava o carreiro. – Esta só pode ser alguma manobra de alguém mal intencionado que quer testar-nos.

- E se não fôr o que estás a pensar? – Júlia indagou excitada e caminhando lado-a-lado com Agira.
- Acho que perderémos a sorte de ter o dinheiro que talvez deus presenteou-nos por saber o quanto sofremos para viver. – Observou Agira.
- Mas aposto que é uma brincadeira de mau gosto de alguém. – Insistiu Maimuna incrédula.

Já estavam junto ao monte de notas quando, de repente, Júlia, movida por impulso inexplicável, agachou-se e pôs a mão sobre o dinheiro. Quando ia erguer-se toda intusiasmada, o molho de lenha que trazia a cabeça caiu ao chão e a mulher transformou-se imediatamente em cabra, que saiu correndo pelo carreiro fora. Um dos homens que se achava emboscado com a corda de sisal na mão, saiu da mata correndo atrás da cabra humana. Vendo isto, Maimuna e Agira deitaram por terra os molhos de lenha e as trouxas de verdura. Apavoradas, correram a sete pés em direcção à povoação gritando pelo socorro. Porém, quando os aldeões partiram em socorro das anciãs que gritavam incansavelmente, viram um homem estranho embrenhando-se pela mata adentro puxando uma cabra que negava caminhar. Não se importando com o sujeito, os aldeões apressaram-se a acudir as mulheres, que vendo o socorro a chegar deitaram-se ao chão e desataram a chorar esgravatando de raiva e dor pelo sucedido. Enquanto choravam copiosamente, as anciãs iam gaguejando tentando, sem sucesso, explicar o que havia sucedido e quando finalmente os aldeões souberam da proeza, já era tarde: os mágicos tinham desaparecido pela floresta adentro e, de lá para cá, jamais foi vista avó Júlia.

Allman Ndyoko
10/10/2010

13 de outubro de 2010

OS LADRÕES E O CHAMBOCO

Não me lembro ao certo como ali parei. Apenas sei que o ambiente do mercado Mbánguia estava em fervescência como sempre, com os vendedores e compradores a realizarem suas pretensões num ambiente cordial, ameno e respeitoso, tal como as regras costumeiras recomendam. Mas aposto que, naquela manhã de céu azul, eu e minha malta de infância haviamos desembocado naquele aglomerado populacional impelido por algo “nobre” e próprio da adolescência, como, por exemplo, o passeio livre e sem destino pré-definido, facto que acontecia com frequência naquele tempo. Eram passeios que não punham ninguém temeroso, pois, todo mundo se conhecia até pelo nome. Era o tempo de Pemba do antigamente, tão distante que até “despedaça” os coraçoes dos que viveram aquela época saudosa.

Contudo, já voltando ao cerne destas linhas, algo surpreendente naquela manhã e naquele local sucedeu. Certamente que alguém no meio da multidão sabia o que ia suceder, mas também é certo que muitos, como nós, nada sabiam até que, de um momento ao outro, as entradas exitentes nos quatro cantos do quintal do mercado, feitos de estacas e bambú, ficaram forçosamente fechadas e consequentemente a actividade comercial interrompeu-se por ordem de quatro milicianos fortemente armados, que gritavam incansavelmente:

- Silêncio, silêncio, silêncio…

De súbito, o frenesim do mercado interrompeu-se e os populares prestaram prontamente a atenção aos milícias. Junto destes, achava-se um homem vestido ao rigor da época: uma balaláica e calça castanha de caquí e sapatos pretos polidos ao ponto. No entanto, os murmúrios dos que se achavam no mercado foram baixando paulatinamente e o homem de balaláica, ostentantando uma estatura baixa, corpo magro, cabelo curto e barba feita cuidadosamente, dirigiu-se a multidão que lhe devorava com os olhos aguçados pela curiosidade:

- Viva o povo unido!
- Viva, viva, viva! – Era a palavra de ordem e o povo tinha-a na ponta da lingua.
- Abaixo os ladrões, inimigos do povo!
- Abaixo, abaixo, abaixo.

Rapidamente esta palavras suscitaram curiosidade desmedida entre os presentes, pois, o memento em que se vivia, qualquer discurso que iniciasse nestes moldes antevia alguma novidade de interesse popular. Mais, o país vivia a guerra de desestabilização e qualquer mensagem saída da boca de autoridade tinha seu crédito, uma vez que, quanto mais as pessoas ficassem informadas, mais possibilidades haviam de precaver-se. Assim viviam as pessoas nos primórdios da guerra!

- Obrigado. - Palmas fortes ecoaram no recinto comercial. – Hoje viemos apresentar-vos os que sabotam o nosso desenvolvimento, a nossa afirmação como nação independente e a nossa unidade.

Quem seria? Um bandido armado? Estes eram questionamentos óbvios que cada um ali presente fazia. No entanto, este enigma não tardou a desvendar-se, pois, enquanto o homem de balaláica discursava, foram trazidos ao centro da moldura humana quatro homens algemados e com feições intristecidas. Perfilados e cabisbaixos, os homens deteram-se ao lado esquerdo do homem de balaláica aguardando a apresentação pública e a execução do veredicto do tribunal popular. Nos seus olhos e nas suas expressões faciais era notória a vergonha e a humilhação. Todavia, nada tinham a fazer para contrariar o destino que, por ganância ou ironia do próprio destino, eles mesmo haviam traçado ou tecido, contrariando a ordem instalada e desafiando a força e euforia do povo, quem o poder lhe pertencia.

- Estes homens foram confiados para nos servir, mas por ganância preferiram servir interesses pessoais roubando o que é do povo.

O povo acompanhava atentamente o discurso excessivamamente politizado e pacientemente aguardava a súmula do mesmo. Fez-se um silêncio, mas logo a voz do homem voltou a ouvir-se.

- Vocês conhecem estes homens? – Apontou com dedo em ríste aos quatro homens cabisbaixos.
- Não! – Gritou o povo desordenadamente.
- São trabalhadores de três cooperativas de bens de consumo. – Fez uma pausa para raciocinar. – Há seis meses que vêm roubando produtos de primeira necessidade, como: arroz, óleo de cozinha, açucar, sabão, etc, e este acto fez com que centenas de famílias fosse prejudicadas em abastecimento, isto é, estas famílias receberam alimentos e outros produtos que não corresponde ao real número do agregado familiar e outras ficaram privadas deste direito, como consequência dos actos destes senhores. Como devem saber, cada grão de arroz abastecida às cooperativas pertece alguém de algum agregado familiar, havendo a necessidade de fazer chegar ao destinatário sob o risco de privá-lo deste produto vital para a sua sobrevivência.

As mangueira frondosas do mercado Mbánguia balançaram ligeiramente agitando ramos e folhas como se concordassem com as palavras do discursante. Uma brisa suave cortou o mercado em diagonal afastando o ar quente e húmido que se fazia sentir.

- Assim, – Prosseguiu o homem de balaláica. – pelo que fizeram, foi-lhes aplicado a pena de vinte chambocos cada e seis meses de prisão.

Um ululu forte e calorosos aplausos emergiram do meio da multidão em saudação à decisão tomada e da boca do homem de balaláica soltou-se uma canção revolucionária que foi imediatamente entoada em coro pelos presentes. No fim, foi trazia ao meio da moldura humana uma cama de ikampala e imediatamente o primeiro ladrão, um homem alto, claro, cabeludo e de barba desleixada, foi amarado de bruços junto a cama para não escapulir. De seguida, um miliciano robusto aproximou-se com um chamboco e quando a ordem foi dada, o chamboco assobiou no ar e no fim ouviu-se um estalo forte acompanhado de um grito de cortar o fôlego. Todavia, as chambocadas prosseguiram com o ladrão agritar pedindo mil desculpas. Este gesto, repetiu-se para o resto do grupo e foi muito doloroso assistir, contudo, parte dos espectadores incitava o miliciano a chamboquear demasiadamente para servir de lição a outros homens com pensamento semelhamente a dos quatro ladrões.

Quando o “espectáculo” terminou, as saidas do mercado foram abertas para permitir a retoma da vida do mercado e os ladrões foram levados de Waz para o calaboiço. E como não podia deixar de ser, o sucedido alimentou conversas quase o resto do dia e, pelo interesse que o assunto suscitara, certamente que servira para desencorajar atitudes semelhantes em muitos que até então roubavam ao povo.

Allman Ndyoko
13/10/2010


Vocabulário:
Ikampalacorda de palha tecida que normalmente no norte de Moçambique serve para fazer o leito da cama feita na base de estacas;
ChambocoCacete. Chamboco foi uma expressão que evoluiu ou foi frequentemente usado no tempo em que Moçambique adoptara o socialismo;
Chamboquearacto de cacetear;
Waz Carro de fabrico russo, que geralmente era usado pelas forças de defesa e segurança do período socialista.

5 de agosto de 2010

OS RAPTORES E A MAGIA NEGRA

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Era uma noite de lua cheia e de céu ornado de estrelas. No povoado de Mbomela fazia frio que se sentia até as entranhas da medula e no céu iluminado, aves nocturnas e de rapina sobrevoavam o espaço cortando a aldeia de lés-a-lés num vôo sem retorno. A floresta, na sua imensidão, repousava em silêncio tumular  escutando os assobios desesperados dos grilos e o bater das asas dos mochos e morcegos que davam vida à noite.

O povoado de Mbomela estava silencioso e nos quintais de muitas palhotas, linguas de fogo bailavam no espaço crepitando, de quando em vez, ao prazer do vento, enquanto em volta corpos de homens e mulheres mal protegidos procuravam incansavelmente o calor da fogueira para extinguir o ar frígido que teimava fazer investidas aos aldeões incautos. Enquanto se aqueciam na fogueira, os aldeões iam aguardando com ansiedade e paciência as ordens dos anciãos, reunidos com muntela na chitala da povoação, conversando sobre a onda de raptos de raparigas e mulheres adultas que fustigava a aldeia Mbomela. Naquela semana, haviam circulado no povoado rumores sobre um grupo de homens de povoações distantes que raptava mulheres no caminho que conduzia a fonte e lhes encaminhavam às suas povoações, onde após diversas incisões ao longo do corpo e diversos rituais de convocação da amnésia com vista ao esquecimento total do passado e, principalmente, da sua proveniência, inseriam-as na nova comunidade, onde podiam casar-se com a finalidade de reproduzir para povoar a aldeia dos raptores. Estas mulheres adquiriam imediatamente os direitos sociais detidos pelas mulheres nativas e em casos muito raros conseguiam retornar às suas aldeias de origem, maior parte das vezes, sob a cumplicidade de alguém da nova comunidade que sentia compaixão por elas, principalmente, as que haviam deixado filhos menores na sua comunidade.

Entretanto, as mulheres de Mbomela achavam-se aterrorizadas com as notícias que circulavam, pois viam-se inevitavelmente impelidas ao perigo pela força dos papéis sociais desempenhados na comunidade, cujo alguns obrigavam-as dia-após-dia a percorrer distâncias incríveis em busca da água, elemento essencial da vida humana, em zonas veiculadas como prováveis esconderijos dos raptores. Todavia, o conselho dos anciãos da povoação havia tomado em conta a preocupação e naquela noite frígida e silenciosa encontrava-se reunido na chitala com um muntela para encontrar a solução do problema.

Volvido algum momento, a reunião chegou ao fim e o muntela trajado de retalhos de peles de animais ferozes e com amuletos pendurados ao pescoço avançou até ao limiar da povoação, onde com ajuda de um rabo peludo de leão, simbolo do poder mágico-tradicional, fez um circulo em volta da aldeia. De seguida, fez uma cruz no chão e no ar da entrada do povoado balbuciando algo imperceptível que dir-se-ia um cântico mágico e no fim, caminhou despido em plena luz lunar até ao terreiro, onde a dentada degolou um galo e deixou-o estrebuchar até a última agonia. Um grupo de quatro anciãos trouxe um pote contendo água e raizes de diferentes plantas e depositaram em frente do muntela que sacudia pausadamente no ar o rabo de leão dizendo algo imperceptível. Depois, o muntela mergulhou uma cabaça na infusão do pote, levou aos lábios, encheu a boca e borrifou o líquido com força sobre a ave já morta e disse:

- Chamem as raparigas e as mulheres adultas para o ritual.

Rapidamente, vários anciãos sairam em busca das raparigas e mulheres adultas em idade reprodutiva, enquanto o muntela retalhava a mão e a dentada o galo morto sob o olhar curioso de alguns anciãos que lhe assistiam em silêncio. No entanto, o muntela juntou os retalhos da ave na infusão e mexeu-a com ajuda de um pau, razoavelmente, comprido dizendo palavras estranhas e desprovidas de sentido. No fim, fez uma enorme fogueira e cantando no silêncio da noite com a voz nítida, deu um salto brusco sacudindo o velho corpo numa coreografia contagiante.

Dali em breve, o terreiro ficou repleto de mulheres e o muntela fez incisões na testa aplicando seguidamente um pó negro de ervas queimadas e trituradas. Depois, as mulheres beberam a infusão e o muntela advertiu:

- O que acabaram de beber chama-se infusão da velhice e qualquer pessoa que quiser raptar-vos verá em vós autênticas velhotas andando trémula e apoiando-se à bengala. Por isso, quando se encontrarem com possíveis raptores não tenham medo e procurem depositar a vossa fé neste ritual que acaba de acontecer.

Dito isto, as mulheres dispersaram-se e o terreiro ficou novamente silencioso. O muntela extinguiu a fogueira, vestiu-se calmamente e na mesma noite abandonou a aldeia acompanhado por seis anciãos.

Ao alvorecer, o dia nasceu brumoso e ruidoso. Ventos moderados lançavam-se contra a floresta acompanhados de chuva miúda e obliqua que vergastava o ambiente provocando o cheiro intenso da poeira.

Um grupo de mulheres de Mbomela saiu em busca da água na floresta. Caminhou durante muito tempo no meio da mata fechada e num atalho tortuoso ladeado de arbustos de sombras escuras, ergueu-se um grupo de dez raptores munidos de cordas e catanas. Lançou o olhar às mulheres e, curiosamente, o grupo viu oito velhas centenárias com pequenas bilhas à cabeça andando vagorosamente com ajuda de bengalas feitas de ramos de árvores secas. As mulheres passaram disfarçadas em frente dos raptores e em seguida alcançaram a fonte, onde encheram as bilhas de água e voltaram a povoação passando novamente em frente dos raptores que lhes olhavam com desinteresse.

Entretanto, o dia passou sem que os raptores lograssem raptar alguém e os dias que se seguiram o cenário não mudou e os raptores voltaram a ver as mesmas velhas centenárias passando cansadas e com pequenas bilhas à cabeça. Nisto, os homens exaustos e sem resultado acabaram desistindo à intenção regressando definitivamente a sua povoação.

Allman Ndyoko
12/03/2008

GLOSSÁRIO
Muntela – Curandeiro;
Chitala – Local de convivio social dos homens;

31 de maio de 2010

O RETORNO

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Um vento forte fustigou levantando uma nuvem de poeira e os vestes de Mbalale, que imediatamente esvoaçaram na direcção do vento. Volvido algum momento, o vento parou. Uma neblina cobriu o ambiente e uma escada longa, dourada e sem corrimão surgiu na sua frente elevando-se até ao céu coberto de nuvens brancas e espessas. Um impulso inexplicável impeliu Mbalale a subir os degraus. Vagarosamente e ausente de si, foi subindo a escada que parecia sem fim e à medida que galgava ia sentindo o corpo gélido, equilibrado e quase sem anomalias. Uma paz interior invadiu o coração e a memória de acontecimentos recentes se esvaiu como um relâmpago. Em sua volta, à escassos metros donde se encontrava caminhando, sem saber para onde, seres humanos voadores trajados de branco e com as costas pregadas de asas lhe vigiavam cautelosamente acompanhando o seu percurso.

Entretanto, chegou a um ponto onde as nuvens viam-se em baixo a uma distância consideravelmente longa. Contudo, prosseguiu a marcha mesmo sem saber o destino e mais adiante, encontrou um homem alto, robusto e de capuz empunhando um cajado. Ele achava-se parado no meio do percurso, onde a escada se dividia em duas partes tomando direcções opostas. Nesse ponto, iniciavam dois caminhos de terra cor branca como as areias da praia. Nas extremidades desses caminhos achava-se uma infinidade de flores que se estendiam na terra formando um tapete colorido de beleza incomparável. Ao aproximar-se do sujeito, Mabalale parou e logo foi-lhe ordenado a seguir o caminho que conduzia à direita. Enquanto marchava no novo caminho coberto de céu azul, Mbalale ouviu vozes de gente cantando em uníssono cânticos desconhecidos, mas belos e contagiantes. Doutro caminho que ia à esquerda chegavam-lhe aos ouvidos gemidos de gente, gritos de socorro, estalidos de chicote e sons de correntes metálicas arrastadas no chão pavimentado e pedregoso. Porém, prosseguiu a marcha até a uma cancela guardada por homens robustos e valentes, onde parou aguardando ordem. Nesse instante, deitou a vista do lado oposto à cancela e viu uma multidão de gente sentado no chão aguardando a chamada para o ponto donde vinham as vozes dos cânticos belos e confortantes. Nessa multidão, Mbalale viu seus parentes mortos há muitos anos também sentados junto à multidão. Ficou perplexo e de queixo caido. Esbugalhou os olhos e nesse instante ouviu deles:

- Ninguém te chamou. A tua hora ainda está por vir...

Enquanto diziam isto em coro, repetidas vezes e de cabeça cabisbaixa, um guarda da cancela tocou as costas do Mbalale com um cajado e ordenou-o a retornar. Sem resistência e muito indiferente, Mbalale voltou a percorrer o caminho que havia andado e mais adiante encontrou um homem com um capuz parado na berma. O homem interrompeu o marchante e logo disse-lhe:

- Siga este caminho. – Apontou para um ponto que descia e no fim via-se uma floresta densa e escura. – Mais adiante encontrarás alguém perto de um lago e essa pessoa te servirá água numa cabaça. Não bebas e prossiga a marcha. Mais em frente, voltarás a encontrar outra pessoa que também encontra-se ao lado de um lago de água limpa, fresca e reluzente e quando servir-te aceita-a, beba e prossiga. Entendeu?

- Entendi! – Respondeu Mbalale uma vez mais ausente de si.

Na verdade, mais em frente encontrou o primeiro homem de capuz preto que imediatamente lhe serviu água de forma astuta, mas Mbalale recusou a oferta conforme havia lhe instruido o guarda da cancela. Já adiante, encontrou o outro homem de capuz branco que lhe serviu água numa cabaça. Mbalale aceitou a oferta e antes de levar a cabaça aos lábios, tratou de olhar para o lago e viu que tinha águas limpas e reluzentes. Então, bebeu o líquido seguramente e quando engoliu a última gota da cabaça viu-se no cemitério, no meio de uma clareira, onde gente da sua povoação lhe rodeava chorando e preparados para o sepultar. Desfez-se dos panos que lhe envolviam e alguns aldeões fugiram a sete pés medrosos pelo retorno misterioso do ex-finado ao mundo dos vivos, naquela tarde de Junho de sol avermelhado...

- Allman Ndyoko
09/04/2008

1 de abril de 2010

O FALSO ALARME

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Estavámos no longínquo ano de 1984, se a memória não me induz ao erro. Quino, Chiquito, Bacar, Saíde e Aidar haviam passado toda manhã no recinto do Jardim Infantil, próximo ao Estádio Municipal, brincando “pega – pega” e pulando habilmente nos ramos das numerosas amendoeiras que assomavam naquele pequeno mundo infantil. Brincavam incansavelmente com a ânsia de matar o tempo para assistir a grande partida de futebol entre a Associação Desportiva de Pemba e Textáfrica, equipa fabril do planalto de Manica. Era uma partida importante do Campeonato Nacional de Futebol, e isto provava-se pela chegada massiva de adeptos de todos quadrantes da baia, no recinto desportivo. Nos três principais portões do estádio eram visíveis bichas infindáveis de adeptos que entravam para o interior, a maioria com receptores colados ao ouvido. Era o tempo em que o futebol constituia o passatempo predilecto do pembenses.

Desceram das árvores. Em silêncio pularam o muro do jardim e pararam no passeio para traçar a estratégia de entrada, enquanto o sol decaía vagarosamente enchendo de brilho as cores castanha e vermelha da terra. As equipas defrontantes ainda não tinham descido ao pelado, mas a enchente era demasiada de tal ordem que, para qualquer incáuto, parecia o jogo ter iniciado.

- Vamos tentar a sorte. – Disse Quino enfiado num fato-macaco de jeans encardido. – Cada um de nós deverá pedir boleia alguém mais velho com bilhete de acesso ao estádio.

- Para isso devemos distribuír-nos nos três portões do estádio. – Observou Bacar, filho de árbitro Bacar Tarupa.

- Penso que sim, apesar de tu não precisares disso por seu pai ser árbitro. – Retorquiu Quino rindo-se de lado e ocultando a boca, em sinal de gozo.

- O facto do meu pai ser árbitro penso que não quer dizer nada, porque, por exemplo agora, não posso entrar no estádio porque ele já está dentro do campo. – Contra-atacou Bacar sorrindo.

- Mas os porteiros todos te conhecem até de cheiro. – Disse Chiquito brincalhão.

Riram todos satisfeitos. Depois de breves instantes de silêncio, Bacar, cabisbaixo e pensativo, disse:

- Tenho uma opinião importante e ideias interessantes para resolvermos o problema que nos preocupa. Não podemos tentar a sorte no portão três, porque está lá o carasco nhê Ibrahimo, inimigo da criançada em dias de futebol. E se nos portões um e dois não tivermos sucesso, temos quatro saídas à nossa disposição.

- Quais? – Quiseram saber os amigos em coro.

- Muito simples! – Bacar fez um suspense que durou breves instantes. – Podemos ver o jogo apartir do terraço do prédio da LAM ou dos galhos das árvores mais altas emergidas em volta do estádio; pulando o muro do estádio do lado mais baixo ou aguardando até ao período dos últimos trinta minutos que normalmente servem para a abertura dos portões para facilitar a saída atempada e ordenada dos adeptos.

As propostas foram analisadas rapidamente. No final, reavivando a esperança da malta, Aidar disse:

- Penso que nhê Ibrahimo já não é problema para agente. Ele deve-me alguns favores...

O pronunciamento do Aidar suscitou uma enorme curiosidade que podia-se ler nos olhos brilhantes de cada um. E com uma expressão corporal de quem cobra pormenores, ficaram alí, naquele momento, devorando-o e com vontade imensurável de pegá-lo pelo colarinho da camisa até vomitar o inígma. Porém, nada disso foi necessário, pois, os gestos inofensivos, mas expressivos, da malta venceram o momento enigmático.

- Durante as noites da semana passada, o nhê Ibrahimo serviu-se de mim para chamar sua amante que é minha vizinha.

- Já estou a ver quem é! – Rematou Chiquito em jeito de brincadeira. Depois, continuou. - E por ter-se servido dos extraordinários favores do senhor, nhê Ibrahimo não vai negar-te o favorzinho de deixá-lo mergulhar no estádio na companhia deste bando inútil de amigos.  

A malta riu-se.

- A ideia é extraordinária! – Disse Quino acariciando levemente o queixo liso com os dedos polegar e indicador da mão esquerda. – E não há nada melhor que pensar e...
- Realizarrr...! – Acudiram-o os amigos em coro.
- Mãos à obra! – Gritou Saíde fazendo uma vénia grotesca com um braço apontado ao estádio.

Sairam do passeio às corridas com a esperança de ver-se no interior do campo. Enquanto corriam ao encontro da fila de adeptos e simples espectadores do portão três, na entrada da bancada de sombra a equipa da casa ia entrando e descendo aos balneários no meio de um ambiente de festa e encorajamento, caracterizado por assobios e apláusos desordenados dos adeptos. Nisto, alcançaram a fila. Desrespeitando à sequência estabelecida e abusando ingenuamente a confiança imaginária do nhê Ibrahimo, emergiram agarradinhos e em fila indiana defronte do portão com os olhos prenhe de esperança. Nhê Ibrahimo reconheceu imediatamente o seu pequeno confidente. Com a mão erguida e em forma de facão, separou-o dos demais amigos. Aidar reclamou imobilizando-se e fazendo uma careta de protesto. O protesto foi imediatamente aceite e a malta viu-se, finalmente, no interior do estádio.

O jogo tinha começado e a equipa da casa contra-atacava com vigorosidade chegando a alcançar diversas vezes a grande área adversária, mas sem sucesso. Todavia, a ausadia de alcançar a baliza adversária alimentava aos adeptos de Pemba a esperança de uma possível victória e a atitude da equipa prosseguiu até um quarto do fim da segunda parte da partida, quando subitamente um adepto da equipa Pembense, advinhando uma possível derrota para a sua equipa, aproximou-se à baliza do guarda-redes Zé Luís e, apontando algo nas malhas, saiu desesperadamente gritando em macua:

- “Inhanca”, “inhanca”, “inhanca”... – amuleto, amuleto, amuleto...

A noticia correu as bancadas com velocidade de uma ave de rapina; Em escassos instantes o pelado foi invadido por uma legião de adeptos furiosos que interrompeu a partida imediatamente e escorraçou os jogadores da Textáfrica à pedrada. A fúria dos adeptos Pembenses, que achavam que o amuleto descoberto impedia-lhes de ganhar a partida, foi tão forte de tal modo que o corpo policial, destacado para garantir a segurança e tranquilidade públicas no local do jogo, viu-se incapaz de suster as acções dos furiosos.

No entanto, os jogadores visitantes conseguiram, milagrosamente, abandonar o recinto desportivo e para escapar-se das investidas dos furiosos, procuraram alcançar o Hotel Cabo Delgado, que dista alguns metros do estádio, correndo em debandada. Por sorte, ninguém feriu-se gravamente, mas a situação criou um grande susto aos visitantes.

Na verdade, o que o adepto boateiro vira era um pequeno rolo de linha preta com algumas agulhas que um dos trabalhadores do estádio perdera, na manhã daquele dia, quando montava as redes das balizas. Todavia, o incidente fez correr rios de tinta na imprensa nacional e foi veemente repudiado nos mais diversos meios de comunicação social. E, de lá para cá, como resultado do trabalho da imprensa e do bom senso dos populares, jamais voltou a suceder algo de género no pelado do município da terceira baia mais linda do mundo; Mas o sucedido naquele ano ficou gravado na memória do povo, principalmente, de gente mais velha, e, hoje serve de exemplo para os mais novos perpetuarem a convivência pacífica nos campos desportivos.

Allman Ndyoko
21/03/2010