9 de novembro de 2010

A CABRA MÁGICA

Era tarde de domingo. O sol de final de Outubro descia o poente lento, gingão e preguiçoso acompanhado de fiapos de nuvens vermelhas, influenciadas pelo reflexo solar, que aquelas alturas do ano se fazem presentes como se anunciassem o final do ano.

A vida na aldeia Heróis do Povo corria sem sobressaltos com a criançada envolvida em brincadeiras diversas no meio de uma paisagem virgem e edénica composta de extensas florestas, lagos, rios, montes e aves migratórias que, de ano em ano, cruzavam o céu dos Heróis do Povo, vindo de terras distantes. Muitas vezes, os mais velhos da aldeia aventavam a possibilidade daquelas aves brancas, imponentes e de pernas delgadas virem de Ntwára ou dos grandes lagos, terras distantes que os antepassados faziam alusão em contos orais e tradicionais. Nesses contos, as aves migratórias eram conferidas proezas incríveis que deixavam os petizes da povoação boquiabertos e desejosos de um dia serem como aquelas aves viajantes e conhecedoras de recantos extraordinários e desconhecidos.

No entanto, ao cair a noite naquele dia, correu na aldeia a notícia inquientante de um fenómeno mágico que sucedia nas povoações vizinhas e que consistia na transformação de humanos em cabritos que imediatamente eram imobilizados, amarrados e levados ao mercado, por homens estranhos, onde eram vendidos para o consumo ou criação. Esta notícia, um tanto quanto, ficcionária poucos acreditavam; Contudo, os poucos que deram crédito ao dito e propalado acrescentavam explicando que esta técnica mágica de enriquecimento ilícito e reprovável na comunidade tinha a sua origem nos países limítrofes, onde os aldeões da região, incluindo os de Heróis do Povo matinham contactos comerciais e sociais. Todavia, a notícia não alterou o curso normal da vida dos aldeões de Heróis do Povo, pois, como prova disso, na manhã seguinte as crianças e os adultos acordaram indiferentes e levaram a vida normalmente.

Naquela manhã de tamanha indiferença, avó Agira e suas amigas Júlia e Maimuna, também anciãs da aldeia, desceram as encostas do monte Pué e internaram-se na floresta em busca de lenha e verduras para a refeição do dia. Enquanto caminhavam em fila indiana, no meio de cánticos de pássaros e do sussurar das árvores, avó Agira, movida pela curiosidade, quís se aclarar junto das amigas:

- Acham que é possível o que ouvi ontem ao anoitecer?

- Acerca dos homens estranhos que transformam os outros em cabritos? – Quis situar-se avó Maimuna.

- Sim.

- Acho que é… - Respondeu Maimuna e acrescentou. – Não há fumo sem fogo.

- Essa estória rezo que não chegue ao nosso povoado. – Disse avó Júlia. – Ontem pensei muito nisso e no final fiquei apavorada.

- É natural que se sintas apavorada, pois, os factos narrados não deixam de ser preocupantes, mesmo que pareçam incríveis. – Observou Maimuna.

- Dizem que em cinco dias quatro homens e três mulheres desapareceram da aldeia Pio-Pio e presume-se que tenham sido vitimas dessa maldita magia. – Informou avó Júlia.

Entretanto, chegaram a um pequeno curso de água, onde deteram-se e Júlia começou a colher verduras em pequenos arbustos de folhas excessivamente esverdeadas, enquanto Maimuna e Agira partiam ramos secos de árvores envelhecidas, amontoando de seguida no chão.

- Mas como funciona a maldita magia? – Interrogou Agira um tanto quanto intrigada.

- Não sei! – Júlia encolheu os ombros e arregalou os olhos em sinal de total desconhecimento do fenómeno.

- Dizem que usam dinheiro. – Explicou vagamente Maimuna preparando-se para atar o seu molho de lenha.

- Só dinheiro? – Agira quis perceber devidamente. – Mas como o dinheiro pode transformar um homem em animal?

- Magia, magia, minha querida. – Limitou-se Maimuna a responder.

- Então o assunto é complicado. – Concluiu Júlia. – Já imagiram o que será da nossa aldeia se tais homens chegarem?

- Será uma lástima! – Agira rematou.

- Lástima porquê? – Indagou alguém entre elas.

- Ainda perguntas? – Inquiriu ironicamente Agira e no final, voltou a questionar com sarcasmo. – Esqueces que as crianças da aldeia são muito obsecadas pelo dinheiro?

- Já chega!– Ordenou Júlia com ar de embaraço como se pensasse em seus netos. - Vamos voltar a aldeia.

- Boa ideia… - Disse Maimuna pedindo Agira com gesto de mão para que lhe colocasse a cabeça o molho de lenha e uma pequena trouxa de verdura.

Dalí, as três anciãs e amigas abandonaram a zona do riacho e em fila indiana partiram ao encontro do carreiro que conduzia a aldeia. A manhã estava fresca. Uma corrente de ar fresco soprava, de quando em vez, do norte para o sul fazendo bailar a vegetação, maioritariamente, seca pelo sol do verão. De longe, levados pelo vento, chegavam sons cristalinos de água em queda livre, chilreios de pássaros e vozes entrecortadas de aldeões que trabalhavam no coração da floresta e dos que se ocupavam em diferentes afazeres na povoação. No entanto, pouco tempo depois, alcançaram o carreiro que conduzia a aldeia e, nisto, reiniciaram a marcha acompanhando-a de conversa sobre os homens da aldeia que, de quando em vez, regavam-a com gargalhadas sinceras e de cortar o fôlego.

Já próximo a aldeia, junto a uma frondosa mangueira, dois homens estranhos atiraram para o chão uma infinidade de notas de dinheiro e ocultaram-se em seguida na floresta que ladeava o carreiro. Um dos homens empunhando uma corda de sisal espreitava entre o capim alto, de tempo em tempo, as mulheres que vinham longe conversando distraidas. Quando aproximaram-se da emboscada, o coração da avó Maimuna palpitou sem reservas obrigando-a a interromper a marcha. Ao aperceber-se da atitude da Maimuna, as amigas pararam questionando em coro:

- O que foi?!

Maimuna fechou os olhos. Respirou fundo e abrindo os olhos sobressaltada, retorquiu:

- Olhem para alí junto à berma do caminho!

Júlia e Agira dirigiram os olhos para o local indicado.

- Meu deus! – Disse Júlia estupefacta. – Não é dinheiro aquilo?

- É. – Maimuna respondeu abanando a cabeça positivamente e com ar de muita desconfiança.

- Mas quem poderia perder tanto dinheiro assim? – Inquiriu Júlia visivelmente interessada em tomá-lo.

- Ninguém, Júlia. – Maimuna retomou a marcha fazendo uma ronda com os olhos em volta da floresta que ladeava o carreiro. – Esta só pode ser alguma manobra de alguém mal intencionado que quer testar-nos.

- E se não fôr o que estás a pensar? – Júlia indagou excitada e caminhando lado-a-lado com Agira.
- Acho que perderémos a sorte de ter o dinheiro que talvez deus presenteou-nos por saber o quanto sofremos para viver. – Observou Agira.
- Mas aposto que é uma brincadeira de mau gosto de alguém. – Insistiu Maimuna incrédula.

Já estavam junto ao monte de notas quando, de repente, Júlia, movida por impulso inexplicável, agachou-se e pôs a mão sobre o dinheiro. Quando ia erguer-se toda intusiasmada, o molho de lenha que trazia a cabeça caiu ao chão e a mulher transformou-se imediatamente em cabra, que saiu correndo pelo carreiro fora. Um dos homens que se achava emboscado com a corda de sisal na mão, saiu da mata correndo atrás da cabra humana. Vendo isto, Maimuna e Agira deitaram por terra os molhos de lenha e as trouxas de verdura. Apavoradas, correram a sete pés em direcção à povoação gritando pelo socorro. Porém, quando os aldeões partiram em socorro das anciãs que gritavam incansavelmente, viram um homem estranho embrenhando-se pela mata adentro puxando uma cabra que negava caminhar. Não se importando com o sujeito, os aldeões apressaram-se a acudir as mulheres, que vendo o socorro a chegar deitaram-se ao chão e desataram a chorar esgravatando de raiva e dor pelo sucedido. Enquanto choravam copiosamente, as anciãs iam gaguejando tentando, sem sucesso, explicar o que havia sucedido e quando finalmente os aldeões souberam da proeza, já era tarde: os mágicos tinham desaparecido pela floresta adentro e, de lá para cá, jamais foi vista avó Júlia.

Allman Ndyoko
10/10/2010

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