6 de novembro de 2009

O PROFESSOR VILANCULOS


De estatura normal, face redonda, olhos semi-esbugalhados, corpo magro, ar de excessiva gabarolice - como se tivesse o que orgulhar-se - e cultivador do hábito de criar barba redonda em redor da boca, Vilanculos, à semelhança de muitos outros homens, mulheres e crianças, na época lançados à sua sorte, viera de Maputo na negra e tempestuosa “operação produção” com o rótulo de “improdutivo” e abordo de uma aeronave militar apinhado de co-regionários enviados a baia de Pemba desumanamente, com a finalidade de lhes combater a preguiça, lançando-os em várias frentes de produção nas densas matas de Cabo Delgado.

O Vilanculos e outros sulistas viviam num velho armazém, que servia de centro de acomodação dos “improdutivos”, na baixa da cidade, em condições deploráveis, enquanto aguardavam pelo dia de partida para o destino, que poderia ser: Chipembe, Nguri ou Bandari, para incrementar a produção de hortícolas e bananas naqueles históricos regadios. Nesse intervalo, dado que a vida tornava-se cada vez mais infernal no centro de acomodação, faltando até o que comer, Vilanculos procurou adptar-se ao meio experimentando vários ofícios, como: carregador de cestos no mercado de Mbanguia em Natite, vendedor de tomate e peixe, ajudante de camião de lenha e, por fim, como professor primário voluntário, sem direito a subsídio, quer material, quer financeiro.

Porém, acho importante frisar, muito rapidamente, que graças ao esforço de muitos heróis anónimos da “operação produção”, naquela década, se a memória não me induz ao erro, a província foi distinguida com a emulação socialista que se traduziu na construção de um monumento de betão, alto, em forma de vidro de candeeiro, no meio entre os bairros de Natite e Ingonane. O interior do monumento foi forrado de madeira maciça e o chão assoalhado de mármore branco extraido localmente

Durante muito tempo, na época socialista, o monumento atraiu muitos cooperantes dos países do Leste da europa e alguns curiosos do ocidente, mas a falta de educação dos populares sobre a conservação e sua importância, com o andar do tempo, as esculturas, fotografias e o material eléctrico do monumento foram vandalizados, deixando a infraestrutura sem o seu material histórico.

Mas deixemos de lado a história do monumento de emulação socialista, pois, oportunamente ocupar-me-ei dele com mais vagar, e, voltemos às peripécias do professor Vilanculos.

Como dizia, o Vilanculos tornou-se professor voluntário numa escola primária local, algures em Natite, e dava aulas no período diúrno. Mudou-se para um dos bairros suburbanos da cidade, passou a dar explicação alguns petizes nas horas vagas e rapidamente socializou-se no meio dos nativos. Aos finais de semana e nas noite de meio de semana convivia com amigos macuas e makondes nas tascas reles, consumindo bebidas de fabrico caseiro. Este hábito foi crescendo rapidamente mais do que seus ganhos, resultantes da explicação que dava aos garotos, daí que, na calada da noite foi exercendo outro ofício desonesto apoderando-se bens alheios, que tratava de vender noutros bairros da cidade. E assim, a vida do professor foi andando no meio de muita pompa, de tal modo que, de boca cheia e visivelmente orgulhoso de si e dos seus actos, Vilanculos apelidava aos amigos da tasca, em vários momentos da sua euforia, de pobres e medigos e, impotentes, aceitavam secamente os adjectivos disparados à queima-roupa pelo novo burguês.

Uma certa manhã de céu azul, na hora do intervalo maior, Vilanculos foi trazido na escola descamisado e escoltado por uma multidão de populares que lhe fustigava com varas violentamente em tudo quanto era seu corpo. O professor ao gritos, tinha os braços atados nas costas com firmeza de tirar fôlego e dois patos machos pendiam na cintura como troféu do seu ofício nocturno.

Assim que a multidão furiosa se encontrou no recinto escolar, dirigiu-se a secretaria, onde foi recebida pelo director da escola. Os alunos que se encontravam no pátio escolar gozando o intervalo maior, acorreram junto à multidão aguçados pela curiosidade.

- Senhor Director! – Disse um homem que trazia o prolongamento do fio que amarrava o professor ladrão e que servia para impedí-lo de escapulir. – Trouxemos aqui o seu professor com o intuito de mostrar-lhe o trabalho que ele vem desenvolvendo na comunidade, quando a maioria de nós está a adormir.

O Director baixinho, forte, barrigudo e de barba desleixada escutava atentamente ao discurso que era proferido solenemente pelo representante da multidão.

- Ontem a noite, depois dele ter bebido “nipa” na casa da mãe da Julieta, uma casa onde se vende bebidas alcoólicas de fabrico caseiro, fingiu de embriagado e sonolento. Quando os outros bêbedos acabaram de consumir o que lhes pertencia, abandonaram a casa, na presença dos donos, deixando Vilanculos adormecido.

Fez uma ligeira pausa para ordenar as ideias e nesse instante, uma senhora visivelmente revoltada, acrescentou.

- Como o Vilanculos é conhecido na comunidade, principalmente nos meios onde se vende bebidas alcóolicas de fabrico caseiro, a minha prima e o marido deixaram-lhe repousar no quintal na esperança de vê-lo sair assim que o efeito do álcool terminasse.

- Porém – Disse um homem no meio da multidão. – assim que o nosso amigo deu-se conta rondou a casa para certificar-se se os donos estava adormecidos e no final, dirigiu-se a capoeira, onde apoderou-se destes dois patos. Contudo, o nosso ladrão esqueceu-se de apagar as marcas dos seus calçados em toda trajectória que deu dentro do quintal da casa e simplesmente tratou de ir vender os animais a um seu vizinho.

A multidão murmurou obrigando o homem a interromper a fala; Mas depois, continuou:

- Feitas as deligências, descobriu-se que o Vilanculos era o autor e ele mesmo confirmou o facto na presença de todos estes senhores aqui presentes.
- Muito obrigado pela informação. - Disse o Director esboçado uma certa seriedade que se confundia com decepção. – Lamentamos o sucedido e ao mesmo tempo condenamos a atitude do nosso professor. Como devem saber, ele foi empregue em respeito às suas qualidades profissionais e à situação de “improdutivo” a que se encontra, como forma de dar um pouco de dignidade à sua vida. Mas como ele confessou o crime, penso que a decisão final está com a pessoa lesada.

- Manda prender! – Gritou alguém no meio da multidão.
- Manda prender! manda prender!... – Repetiu a multidão em coro.

Quando a multidão acalmou-se, uma mulher, pelo visto a visada, disse:

- Este é um assunto de polícia. Nós apenas passamos para apresentar a toda gente desta escola os actos do professor Vilanculos.
- Concordo. – Limitou-se o Director a responder abanando a cabeça afirmativamente.

Passado algum momento, a multidão deu meia volta e saiu do recinto da escola com o ladrão. Os alunos em alvoroço, apedrejavam o professor, proferiam-lhe insultos possíveis e só o deixaram quando lhe fizeram atravessar a estrada de areal que delimitava a escola e o círculo do bairro.

Já no círculo, a multidão ainda enfurecida entregou o ladrão, com feições já irreconhecíveis, às autoridades comunitárias que, no dia seguinte o transferiram para a esquadra da cidade, onde depois veio a ser condenado noventa dias de prisão pelo tribunal popular.

Allman Ndyoko
06/11/2009

Vocabulário

Nipa – Aguardente de fabrico caseiro;
Tribunal Popular – Denominação dada aos tribunais antes ao multipartidarismo em Moçambique;

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