25 de setembro de 2009

MUAZIZA


Era meia noite e época de jejum dos maometanos. A noite estava muito escura e no céu, coberto de nuvens negras, os relâmpagos festejavam ao som do trovão coriscando-o e enchendo o ambiente de uma incrível e espectacular luminosidade.

Bacar, jovem mestiço, alto, respeitoso e muito dado à religião, seguia na mota no meio da chuva grossa que teimava cair oblíquamente sobre a cidade. Enquanto seguia a estrada asfaltada, serpenteante e quase infindável, e que divide o grande e o histórico bairro Paquitequete e Ingonane, e, conduz a zona de Kumilamba, a Honda ia expelindo do escape uma fumaça esbranquiçada que pouco-à-pouco diluia-se na escuridão da noite. No entanto, a estrada achava-se deserta de gente e do foco da luz da motorizada, via-se uma infinidade de pingo de chuva que velozmente atravessavam os raios do farol cabando por desfazer depois no asfalto, já há muito tempo cossado, donde erguia o cheiro intenso de poeira molhada que impiedosamente invadia as narinas dos transeuntes. Contudo, num movimento contínuo e barulhento a motorizada ia andando desafiando a chuva teimosa do verão, quando de súbito, um vulto fez sinal de boleia debaixo de um embondeiro à beira da estrada. O jovem abrandou a velocidade e parou assim que se aproximou. Lançou a vista para o vulto no meio da chuva e descobriu tratar-se de uma rapariga dos seus vinte anos de idade.

- Peço boleia, por favor. – Disse a rapariga na maior naturalidade.
- Para onde? – Questionou Bacar em voz alta obrigado pelo roncar ensurdecedora da mota.
- Vou a Kumissete.
- Eu vou a Kuparata, mas não faz mal. – Sossegou-a Bacar e prosseguiu. – O que um jovem como eu não pode fazer para um “foguete” de mulher como tu?

A rapariga sorriu, ergueu a capulana que trazia amarada ao corpo e apoiando-se ao ombro do Bacar, subiu para a motorizada. Ela tinha o corpo totalmente molhada. Tremia de frio e dir-se-ia tratar-se de um pássaro molhado. Ela vestia uma blusa de manga comprida, lenço à cabeça, duas capulanas multicolor e chinelos de banho. Tinha ainda um par brincos de ouro nas orelhas e um brinco no nariz. Os dois braços ostentavam meia dezena de pulseiras metálicas que soavam “tlintlim” sempre que fizesse algum movimento nos braços.

- Toma o meu casaco e veste antes que apanhes gripe. – Disse Bacar tirando um casaco preto de leda que trazia trajado.
- Não. Obrigada. – Atalhou a rapariga amavelmente. – Seria demais...
- Por quê?
- Basta a boleia que me deste.
- Não concordo. – Protestou docemente Bacar como se aquela rapariga conhecesse-a há muito tempo. – Se amanhã caires doente eu me sentirei culpado, por isso, se quiseres realmente a minha boleia, por favor, aceite a minha oferta.
- Tudo bem.- Respondeu a rapariga suspirando e depois de uma breve exitação. – Eu aceito já que insistes...

Recebeu o casaco, passou-o nas costas e vestiu-se. Bacar virou-se para observa-la. Ela tinha um trato delicado, gesto carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. Entratanto, a rapariga abotoou o casaco em silêncio e exibindo sua dentadura branca cor de marfim, passou os braços na cintura do seu interlocutor abraçando-o calorosamente e, no fim, vagarosamente pousou a cabeça nas costas. Bacar sentiu o contacto de seio túrgidos; Um ligeiro arrepio correu-lhe o corpo abaixo, partindo da ponta dos cabelos até aos pés. Igonorou o sinal e com uma atitude ingénua, quis saber:

- Podemos ir?
- À vontade. – Respondeu a rapariga com uma voz enrouquecida.

A mota avançou e pouco-à-pouco a chuva abrandou. O trovão já ouvia-se longe e o coriscar do relâmpago via-se entre as nuvens escuras no horizonte longínquo.

- Desculpa pelo atrevimento. – Disse Bacar em “kimuane” meio embaraçado pela beleza excepcional da rapariga. – Como te chama?
- Muaziza.
- Belo nome...
- Obrigada.
- Moras em Kumissete há muito tempo?
- Acho que sim, pois, é há sensivelmente dez anos.
- Já é muito tempo.
- Pode ser.
- Gostei muito de ti. – Confessou Bacar “despido” de qualquer jeito romântico, atordoante e “cambaleante” à que muitos “patetas” nos habituaram.

A rapariga riu comovida pelas palavras do seu interlocutor; Fechou os olhos e abraçou forte o motociclista. Bacar sorriu feliz pelo sinal e continuou a acelerar a motorizada seguindo o asfalto. Passaram a zona do velho Ruela, atravessaram Kuparata, deixaram Kumilamba e na ponte da estrada da zona do Seabra e que parte do Mercado Municipal e termina em Kumissete, a rapariga questionou:

- Tu gostas de qualquer mulher que vês e apanhas na rua?
- Não. – Riu. – Só que tu não és qualquer...
- O que te garante isso?
- Não sei...mas dentro de mim algo me diz que não és qualquer mulher.
- Em que sentido, mais ou menos?
- Falo em termos de beleza.
- Ahããã...
- Que tinhas pensado?
- Nada!
- E quanto ao que te falei?
- Acho melhor deixarmos para amanhã.
- Posso ficar sossegado que a resposta será positiva?
- Penso que si. E mais, de momento estou só e sinto que preciso de alguém especial... e se calhar és tu.

Os dois riram-se perdidamente e no fim, Bacar disse:

- Fico muito feliz em ouvir isso.

A rapariga não respondeu e Bacar continuou a conduzir a mota. Depois, em frente à um pequeno mercado, mesmo à entrada das primeiras casas de Kumissete, a mota parou e o jovem quis saber:

- Para que lado te levo?
- Óh, por aqui. – Apontou para um beco escuro que conduzia ao coração do bairro. Em seguida, acrescentou. – Estava tão distraida e que me esqueci de tudo.

A mota fumegou, a cremalheira reclamou e numa aceleração suave, arrancou enternando-se no bairro. Já no bairro as ruas estava desertas, o silêncio era incómodo e a chuva tinha parado, ficando apenas o gotejar lento e paulatino dos telhados de “macuti”. De vez enquando, ouvia-se do alto dos coqueiros um fraco grasnido de corvos espantados pelo vento.

- Podes parar alí! – Disse repentinamente Muaziza apontando para uma casa caiada.

A mota parou em frente da casa indicada. A rapariga desceu e Bacar desligou o motor questionando:

- É aqui onde moras?
- Sim.
- Com quem?
- Meus pais e dois irmãos mais novos.

Fez-se silêncio. Mas depois, Bacar quis saber:

- E quanto ao dia de amanhã, o que deverei fazer para te chamar?
- Não é amanhã é hoje.
- Sim, tinha me esquecido que é madrugada. – Sorriu levando as mãos à testa.
- Chegas aqui aceleras a mota três vezes e toca abuzina também mesmas vezes.
- Tu vais sair?
- Sem problema.
- Teus pais não são...como direi, “chatos”?
- Não.
- Então, vejo-te amanhã as sete da noite.
- Tudo bem. – Muaziza sorriu tentando olhar o jovem nos olhos no meio da escuridão.

Bacar pôs a funcionar a mota. Muaziza deu dois passos atrás e de braços cruzados no peito esperou que o jovem avançasse. Acelerou a mota duas vezes, virou o volante e ao engatar a primeira mudança para avançar, o motor desligou-se.

–  Estava me esquecendo de entregar-te o casaco. – Disse Muaziza fezendo movimentos para despir o casaco.

–  Não precisa. – Apressou-se Bacar a dizer. – Podes ficar com ele agora e quando eu vier mais logo levo-o de volta.

–  Não vais te fazer falta?

–  Não, minha flor!

–  Se tens certeza, então eu fico com o casaco e assim aproveito sentir o seu calor e cheiro durante o tempo que resta para amanhecer.

–  Poço pedir-te alguma coisa? – Quis saber Bacar visivelmente excitado.

–  À vontade, meu bem.

–  Peço um beijo para certificar-me que não estou a sonhar.

–  Não, não, não. – Disse a rapariga passando levemente o dedo indicador pelos lábios do Bacar. – Só depois quando me falares das tuas reais intenções...

 – Não tem de quê! – Bacar encolheu os ombros e disse. - Concordo plenamente contigo, penso que mais logo é o momento ideal.

Pôs a mota a funcionar novamente, fez duas acelerações suaves e, despedindo-se da rapariga com um aceno de mão, arrancou mergulhando-se no escuro.

No entanto, ao amanhecer, Bacar foi a pesca na zona de Mussanja na companhia de amigos. Enquanto pescava, o jovem manteve-se meditativo durante muito tempo e cada vez que mergulhava nas profundezas dos seus pensamentos, lembrava-se da Muaziza: seus olhos esbugalhados, lábios vermelhos de “mulala”, sua face redonda e cheia, suas ancas e pernas fartas, seu jeito carinhoso, olhar contagiante e apaixonante. E assim foi até ao entardecer daquele dia.

Ao anoitecer, Bacar parou a mota à hora combinada em frente da casa caiada. Acelerou e buzinou as três vezes combinadas e depois, manteu-se a espera da saida da rapariga. Desligou o motor, apagou o farol e os farolins. Aguardou ansiosamente durante muito tempo e ninguém saiu. Os nervos subira-lhe à cabeça e lembrou-se do casaco. Buscou a coragem para entrar na casa e perguntar, mas logo exitou. Desceu da mota e pôs-se a observar um casal de jovens que passava a sua frente. Esperou alguns minutos para ver se alguém saia da casa, mas nada! Reparou nas duas janelas da casa e viu a luz do cadeeiro e algumas sombras de pessoas desenhadas nas cortinas. Pensou rapidamente e institivamente deu dois passos à caminho da porta do quintal da casa. Nesse momento, uma rapariga, dos seus treze anos de idade, apareceu na porta e parou. Bacar aproximou-a e quase gaguejando, quis saber:

- É aqui onde vive Muaziza?

A rapariga assustou-se. Deu dois passos levando os braços ao peito e tropeçando o chão, saiu correndo para o quintal chorando aos berros. Admirado, Bacar voltou junto a motorizada. Tentou ligar o motor, mas logo a rapariga reapareceu acompanhada de um senhor que o interpelou.

- Sim. – Disse o senhor ofegante. – Em que lhe posso ser útil.
- Desejava falar com Muaziza. – Respondeu Bacar tremendo de medo.
- Estás a gozar connosco?
- Não, senhor.

O senhor suspirou, abanou a cabeça e questionou:

- Quem é o senhor?
- Um amigo da Muaziza.

Houve silêncio e dos quintais das casas vizinhas começaram a sair curiosos ávidos de inteirar-se das reais razões dos berros da rapariga. Depois de alguns instantes de silêncio tumular, o senhor prosseguiu cerimoniosamente:

- Ela morreu faz um ano e enterramos no cemitério familiar em Maringanha.
- É impossível! – Disse Bacar levando as mãos à cabeça. – Eu estive com ela ontem e lhe trouxe aqui.
- É impossível! – Repetiu o homem muito sereno. – Eu enterrei-a com estas minhas mãos. Ela adoeceu muito e morreu sete dias depois.
- Não acredito!
- Essa é que é a verdade, meu caro jovem.

Bacar girou pelos calcanhares e indagou-se:

- E o meu casaco?
- Que casaco? – Interrogou o homem que não devia ter mais do que sessenta anos de idade.
- Deixei-lhe o meu casaco porque me pareceu que estava com frio.
- Bom, talvez seja outra pessoa.
- Não pode ser outra pessoa. – Contradisse o jovem visivelmente transtornado. – Ela não tinha razões para me enganar...
- Diga-me, por favor, como era essa tal Muaziza que tanto falas. – Disse o homem pacientemente.

Rapidamente, Bacar pôs-se a descrever a rapariga e os vestes que trazia.

- É muito grave o que acabas de dizer. – Concluiu o homem. – A descrição é perfeita e os veste são os que a nossa Muaziza vestia no dia do enterro.

Houve novamente um silêncio. Depois, ouviu-se, nas varandas das casas vizinhas, o sussurar de vozes de curiosos admirando, sobretudo, o que Bacar acabara de narrar.

- Meu jovem! – Disse o homem olhando o interlocutor que se achava cabisbaixo e com ar meditativo. – Para deciparmos às dúvidas, o melhor é amanhã dirigirmo-nos à campa da nossa Muaziza...
- Concordo, plenamente.

Bacar arrancou a mota e mergulhou-se na escuridão da noite ausente de si. E já no dia seguinte, logo de manhã, os dois foram a campa da Muaziza e, curiosamente, Bacar, viu o seu casaco pousado no sepulcro e, sem mais, nem menos, caiu desmaiado.

Allman Ndyoko
14/05/2009

P.S - Este teu texto deu-me uma saudade enorme de Pemba e fiz este poema por amizade.
Um abraço
Inez Andrade Paes
Válega 20.8.2009

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