23 de setembro de 2009

NOSTALGIA


Hoje passei na rua do avô Buanamele na zona de Kumilamba, no histórico bairro de Paquitequete. A sua cadeira de descanso e de movimento ondulante e contínuo balançava na varanda de macuti a sós e ao sabor do vento, inspirando aos transeuntes a melancolia e incredulidade no que sucedera ao fiel companheiro das sextas-feiras à tarde.

A cadeira balançava continuamente no meio da brisa do mar, do murmúrio dos habitantes e das palmeiras bailantes, do grasnar pausado e melódico dos corvos, dos vôos rasantes e atrevidos dos milhafres, do rufar persistente de batuques de tufo, da pacífica convivência do islamismo e cristianismo, da beleza singular das mulheres, do sol abrasador de Setembro, enfim, no meio da doce melodia das linguas kimuane e macua entrelaçados coniventemente ao longo dos séculos.

Na varanda onde sempre avô descansava recitando o alcorão, vestido de túnica branca de neve e cofió com bordados multicolores, simbolo do islamismo, o ambiente era lúgubre; Já não se ouvia mais salama e alihandolilahè ditos de viva voz e nem gargalhadas animadas como era hábito.

No interior da casa, que é de pau-à-pique, rebocada de matope e coberta de macuti, só o miar agudo e insistente de gatos marcava a presença preenchendo o vazio como se reivindicassem a morte do avô ou reclamassem a solidão e o silêncio incómodo que se instalara alí desde que o mar, fiel companheiro do avô, traira-lhe roubando-o a vida e escondendo o corpo nas profundezas verdes das suas águas, numa manhã prateada, de céu acinzentado, chuvoso e de tempestade repentina.

Incrédulo, parei defronte da casa e imperceptivelmente o meu olhar perdeu-se no movimento contínuo da cadeira.

Os transeuntes olhavam a cadeira com curiosidade aguçada que se confundia com medo e respeito e relembravam o avô, certamente, sentado alí com o olhar perdido no horizonte e recolhido em seus pensamentos, numa sexta-feira qualquer após a sua habitual reza na mesquita, próxima à casa do sô Ruela, e depois de uma semana intensa de labuta no mar, balançando o corpo de frente para atrás num embalo profundo, de quando em vez, acompanhado de um recital melódico do alcorão aprendido na mocidade distante numa das inúmeras madrassas do Paquite.

O vento soprou suavemente. Pestanejei vezes sem conta e caí na emoção. Dois fios grossos de lágrimas desceram dos cantos dos olhos e precipitaram-se à boca abaixo. Suspirei profundamente. Enchi os pulmões de ar e no instante seguinte libertei-o. Manti-me alí parado como estátua se tratasse e de repente, após um ligeiro redomoinho estranho, ví avô Buanamele sentado na sua cadeira e acenando-me a mão. Tinha um olhar sereno e alegre. Seus lábios cor de mulala tremiam de emoção, deixando à vista os seus únicos quatro dentes incisivos. Tinha bochechas chupadas, olhos perdidos no fundo da órbita, corpo esquelético, pele cansada e profundas rugas na testa. Balançava na cadeira de frente para atrás trajado de túnica, cofió e chinelos de banho, seus vestes habituais às sextas-feira.

Fiz movimento para caminhar. Curiosamente as pernas cederam sem relutância e de seguida caminhei ao seu encontro. Quando me encontrei junto dele, acomodei-me medroso e atentamente na borda da varanda, sem muro, e bem próximo dele.

- Estás com medo? – Inquiriu o avô olhando-me de esguelha.
- Medo? Eu? – Sorri para disfarsar o meu real estado de espírito. – Não, avô.
- Sei que estás... – Sua voz era serena. Tinha aspecto facial descontraido, olhar meio ausente e um sentimento nostálgico. – Mas fique sossegado. Sou inofensivo.
- Obrigado. – Balbuciei.
- Ainda estou de viagem. – Comunicou ele evitando olhar pra mim. – Apenas quís vir reviver os momentos alegres que passei nesta varanda.

Manti-me calado e com os ouvidos à sua disposição.

- Momentos que ficaram para atrás e na poeira do tempo. – Acrescentou o avô após uma breve pausa. – Anos em que pescadores com caixotes transbordantes de peixes à cabeça passavam de rua-à-rua e beco-à-beco deste bairro gritando de viva voz hopa, hopa, hopa – peixe, peixe, peixe. - e em seguida as mulheres todas lindas, vestidas de blusas de mangas compridas e curtas e capulanas multicolores amarradas à cintura, muitas delas com mussiro no rosto e lábios pintados de mulala, interrompiam os gritos dos pobres pescadores comprando o peixe, polvo e mexilhão que eram medidos aos montes modestos e justos que davam para alimentar meia dúzia de bocas sem grandes sobressaltos.

O avô fez uma pausa, durante o qual pareceu ordenar as suas ideias e depois, prosseguiu:

- Eram momentos em que o mar e os homens viviam em harmonia. Momentos em que o mar obedecia aos homens e os seus recursos pertenciam a todos. – Sorriu feliz com os olhos pregados no céu. Quando baixou-os, acrescentou: - Eram tempos em que os pescadores com os remos atravessados ao ombro e cestos de peixes suspensos na ponta do remo, distribuiam sorrisos à toda gente de tanta satisfação, gabavam-se do ofício que exerciam e viviam dele exclusivamente.
- São, com certeza, momentos que jamais voltarão! – Acrescentei com um tom de voz carregado de profunda tristeza.
- Sem dúvida! – Respondeu-me também com um tom de voz triste.
- Mas acho que nem tudo se perdeu na poeira do tempo.
- Com certeza! – Animou a sua face sulcada de profundas rugas e continuou. – Há coisas que o tempo não apaga! Por exemplo: o rubro que as acácias se revestem de Novembro à Janeiro; o simpático bailar das palmeiras gigantes; o vivo grasnar dos corvos; o azul do mar; a areia branca, macia e solta da praia; o cheiro do mar; as madrugadas prateadas; o pôr do sol silencioso; o bailar espectacular das casquinhas na crista das ondas; o verde do fundo do mar; enfim.

Calou-se. Olhou-me silencioso e depois, disse:

- Tenho que partir. – Arregalou os olhos erguendo as pestanas, encolheu os lábios e de seguida, prosseguiu: - Devem estar a minha espera para a viagem sem retorno.
- Viagem sem retorno? – Inquiri curioso torcendo o pescoço para o avô.
- Sim. – Sussurou inspencionando a nossa volta com os olhos arregalados e com um incómodo sentimento de medo.
- Schh, avô! Como assim? – Incentivei-o a continuar. – Diga-me, por favor, como se faz essa viagem?

Avô manteve-se calado e cabisbaixo. No entanto, baixei os olhos procurando perceber a maldita viagem sem retorno e quando ergui-os, a cadeira do avô balançava à sós. Levantei-me boquiaberto. Revistei o local em vão e rapidamente tratei de sumir dalí com o espírito dominado pelo medo e o corpo repleto de um calafrio estranho que deixava os cabelos tesos.

Allman Ndyoko
23/08/2009

Vocabulário:
Macuti – Palha muito abundante no litoral da zona norte de Moçambique e usado para a cobertura de casa e fabrico de objectos de uso doméstico e pessoal (cestos, chapéus, leques, etc).
Tufo – Dança de mulheres kimuane acompanhada de batuques executados pelos homens.
Salama – Significa como estás? Normalmente usa-se quando se quer saber o estado de saúde doutro. Esta expressão provem do kiswahil e é usada em todas linguas de Cabo Delgado.
Alihandolilahè – Significa graças à deus. A palavra deriva do Árabe.
Mussiro ou simplesmente n’siro – Pó derivado da fricção de um pedaço de uma árvore muito abundante no norte de Moçambique e usa-se para acrescer a beleza nas mulheres.
Mulala ou n’lala – Escova natural que usado pinta os lábios de um tom alaranjado.
Hópa ou Ihópa – Peixe.
Madrassa – Escola islámica onde aprende-se o alcorão.

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