30 de novembro de 2009

A ORIGEM


(Gravura fictícia formada por imagens livres recolhidas na net)


Não havia em todo planalto makonde um homem tão erudito como Alupeke. Ele era um homem simples de estatura baixa, robusto, escuro, cabeça calva e olhos castanhos de um tom aproximado ao cacau. Pertencia à linhagem namakongo e tinha tatuado a cara, o tórax, o abdómen, a região renal e os braços. A sua tatuagem tinha um carácter decorativo do corpo com desenhos coloridos como acontecia com os demais makondes. Para além da tatuagem tinha os dentes afiados e este processo não fora de nascença, tinha sido feito no likumbi quando era criança.

Como dizia, a sua erudição havia bebido dos velhos antigos makondes e uma boa parte contada pelo seu avô materno quem havia lhe feito crescer. O homem era por excelência um exímio contador de estórias antigas e tinha conquistado em todo planalto uma invejável fama e simpatia de gente humilde de todas idades. Nas festividades das aldeias Alupeke era o convidado de honra e lá delirava o auditório con suas narrativas heróicas grandiosas tendo no meio das façanhas personagens makondes valentes e destemidos.

Entretanto, um certo dia um grupo de jovens da povoação de Antupa irrompeu à casa do chefe da aldeia, que também se chamava Antupa, para pedir que intervisse numa contenda banal de dois jovens que discutiam sem consenso acerca da origem do povo makonde. Achando interessante a discussão, o chefe Antupa convocou todos os sábios da sua povoação para encontrar a verdadeira estória sobre a origem dos makondes. Porém, o dia aprazado para a reunião foi sábado atarde. Era inverno. Atarde estava nublada, fria e agradável. A chitala de Antupa em tão pouco tempo ficou repleta de jovens ávidos de ouvir estórias antigas transmitidas de boca em boca, séculos e séculos, sem que perdesse na totalidade o sentido que as perpetua de geração em geração. O terreiro, por sua vez, ficou abarrotado de gente, ruidoso, vivo e impressionante como nunca, e, dir-se-ia que uma competição de mapico estava preste a desenrolar-se.

No entanto, o velho Antupa apresentou ao auditório quatro sábios, dentre os quais, o afamado Alupeke. Os jovens ulularam de alegria, aplaudiram incansavelmente e assobiaram. Depois, chamou o primeiro sábio para contar o que sabia à propósito da origem do povo makonde. O terreiro gelou de silêncio que era tão profundo ao ponto de se ouvir a respiração compassada da multidão. Um velho baixinho, de rosto redondo e tatuado, de dentes afiados e barba desleixada atravessou o centro da roda humana e deteve-se no centro com ar cerimonioso.

- Sei muito pouco sobre a história da nossa origem. – Confessou o velho tímido e sem precipitar-se. Depois, continuou. – Contudo, rezam os relatos antigos que o nosso berço ficava no lado do planalto que pende para o rio Rovuma e lá a terra era coberta de mato grosso. Um certo dia, desse mato saiu um homem que não banhava e bebia e comia muito pouco. Este homem, um dia foi a uma floresta vizinha, onde esculpiu uma figura humana no pau-preto e trouxe onde vivia. Ao anoitecer, a figura esculpida despertou para a vida e tornou-se mulher.

O velho interrompeu a narração para respirar e de seguida, prosseguiu no ponto onde havia interrompido:

- Na mesma noite, os dois desceram ao rio Rovuma para se banhar e aqui a mulher deu luz uma criança que nasceu morta. Sairam dali, atravessaram o rio, subiram o planalto pelo meio até uma certa região, onde se fixaram. Aqui a mulher deu luz outro bebé que também nasceu sem vida. Depois disto voltaram ao Rovuma. Aqui nasceu o terceiro filho, vivo e saudável. Viveram aqui até gerarem muitos filhos que formaram a família makonde.

O velho girou pelos calcanhares e foi-se acomodar. Os dois que seguiram não trouxeram novidades, apenas subscreveram a estória narrada pelo primeiro sábio. E para terminar, foi convidado o famoso Alupeke para contar o que sabia à propósito do assunto que lhes reunia. O auditório animou-se repentinamente, criou-se um murmúrio ensurdecedor que cessou assim que Alupeke posicionou-se no centro balouçando a cabeça.

- O que vou contar não vem de mim. – Advertiu Alupeke com uma voz viva, alegre e solene. – Fui contado por homens eruditos makondes que guardaram na sua memória um legado historico muito importante do nosso povo.

Alupeke baixou os olhos, pestanejou e manteve-se calado por uns breves instantes, durante os quais esteve a ressuscitar em pensamento as narrativas dos sábios antigos. Depois, como se acordasse de um sonho, acrescentou:

- Por isso, guardem no coração tudo o que de mim ouvirem porque tudo é verdadeiro como o orvalho que se forma nas madrugadas frígidas de inverno.

Todos riram satisfeitos pelas suas palavras belas e sábias. Porém, sem gaguejar e nem precipitar-se, Alupeke, continuou deixando um ofuscante relâmpago de sincero orgulho brilhar nos olhos:

- Há muito, muito tempo, o nosso povo no seu todo vivia lá para as bandas do lago Niassa. Um certo dia, veio naquelas bandas um povo estranho chamado Ngoni que expulso pelos povos dos reinos lacustres do Lago Victória veio até às terras habitadas pelo nosso povo à procura de terras para habitar. – Sorriu e prosseguiu com uma entoação vocal embaladora. – Temendo um confronto sangrento com aqueles estranhos, o nosso povo veio afixar-se no vale do rio Rovuma, à volta do Negomano, fixando-se pelas baixas do rio, onde havia abundância de caça. Contudo, aqui o povo foi expulso por uma terrível seca e fome. A fome que se seguiu era tanta que as pessoas foram obrigadas a alimentar-se de carne humana.

O silêncio em redor continuava pesado, a atenção aumentava à medida que o narrador contava os episódios históricos e o estado melancólico tornava-se evidente no auditório sempre que os factos penetrassem em cenários tristes.

- O nosso povo não se conteve. Caminhou à procura de alimentos até que, por sorte, encontraram desabitado o planalto onde hoje temos a honra de viver e aqui fixou-se. Contudo, neste planalto não havia água, mas a terra era fresca e produtiva. Daí em diante, os nossos ancestrais trabalharam a terra e com ajuda da chuva e fortes orvalhos tiveram abundância de alimentos. Apartir desse momento, o nosso povo, que não tinha o nome que hoje tem, ficou conhecido por vamakonde que significa pessoas que vivem em terras sem água mas férteis.

Alupeke calou-se, retirou-se do centro da moldura humana para se juntar ao grupo de outros sábios e nesse momento houve uma chuva de aplausos que encheu o terreiro sem parar. A multidão irrompeu o centro cantando alegre e o erudito Alupeke foi imediatamente carregado pelos populares endoidecidos pela sua recente narrativa. O terreiro voltou a encher-se de murmúrios e assobios. Um largo sol aclarou a povoação e um grupo de jovens satisfeitos improvisou uma sessão de mapico para homenagear o génio.

Allman Ndyoko
01/04/2007

Glossário
Namakongo – Linhagem Namakongo;
Likumbi – Rito de iniciação;
Chitala – Local de convívio social dos homens;
Mapiko – Dança de máscara;
Vamakonde – Makondes
Ngoni – Grupo étnico dessidente dos Zulus que por volta de 1834 veio afixar-se na zona do lago Niassa vindo do lago Victória, provavelmente, expulso por alguns reinos lacustres.

2 comentários:

F. J. Branquinho de Almeida disse...

Gostei. Parabéns.

Unknown disse...

de facto tanto a escrita como a música é o que de mais importante temos na vida. por esse facto até me inscrevi numa escola de música, se alguém quiser, visitem o site www.emma-actividades-musicais.pt