12 de novembro de 2009

O CANIBAL


- Daqui a poucos dias, tu e outros rapazes da aldeia irão ao likumbi, em cumprimento de uma das fases do ciclo da vida. – Informou Ntchipoka ao filho sentados debaixo da sombra de uma grande e frondosa mangueira que emergia no centro do quintal da sua casa. – Lá tornar-se-ás homem de verdade e o mundo na sua imensidão e adversidade abrir-lhe-á as portas oferecendo-lhe o que de melhor tem.

- Como? – Indagou Ananhemia curioso.

- Muito simples. – Ntchipoka virou-se para o filho e acrescentou. – Apartir daí, terás o estatuto de adulto; Serás uma referência para outros adolescentes e jovens que ainda não fora ao likumbi; Passarás a participar nas cerimónias fúnebres; Poderás visitar vali noutros likumbi, namorar, casar, ter filhos e educa-los conforme mandam os nossos costumes.

- E se não fôr? – Ananhemia voltou a questionar brincalhão.

- A tua vida se complicará! O povoado todo saberá da sua situação; Serás negado namorar e casar, pois as meminas ao se aperceberem da sua situação farão questão de espalha-la entre elas; Não será permitido participar nos funerais; Os seus conselhos não terão valor e, em resumo, serás excluido das actividades sociais mais importantes da comunidade makonde.

- Vejo que é algo muito importante. – Confessou Ananhemia, um garoto de uns dezasete anos de idade e depois, quís saber: - E o que fazem os rapazes lá no likumbi?

Ntchipoka coçou a cabeça, procurou a resposta adequada à questão colocada e no fim, disse:

- Muita coisa bela e inesquecível, meu filho. – Ntchipoka sorriu com o olhar perdido na sua adolescência distante e volvidos alguns instantes, acrescentou com uma certa nostalgia: - Lá canta-se; Conta-se estórias antigas repletas de significação; Dança-se; Conversa-se; Faz-se amizades que, às vezes, duram toda a vida; Aprende-se coisas novas e maravilhosas sobre a vida, enfim, tudo com o propósito de forjar um homem novo com perfil assente nas normas de boa convivência do nosso povo.

Ntchipoka fez uma pausa para organizar as suas ideias, olhou para o filho com afecto e sorrindo, prosseguiu:

- Tenho certeza que irás gostar e o sacrifício que lá consentires valerá a pena. No teu regresso do mato deixarás de te chamarem Ananhemia e adoptarás um novo nome à seu gosto que simbolizará o renascimento ou, por outras palavras, o rompimento do laço da infância. Apartir desse dia, mudarás de atitude preferindo a que mais te prestigia; Deixarás de brincar com vatchungo e a sua vida será mais regrada de forma que sirvas de exemplo à seguir.

- Acho que será muito divertido! – Disse Ananhemia com uma ponta de satisfação e logo, continuou. – Quando voltar terei muitas novidades para os meus amigos que se acotovelarão só para saber onde eu tinha ido e como as coisas haviam lá corrido.

- É, mas é expressamente proibido contar aos rapazes que lá ainda não foram o que lá viveres.

- Porquê?

- Não se sabe ao certo porquê não se deve contar as coisas do likumbi, mas o que sei é que fazemos assim porque assim faziam os nossos antepassados.

- Ah, ah, ah, ah... – Gargalhou Ananhemia satisfeito com a resposta do pai. No fim, disse: - É muito engraçado isso, pai!
- Concordo contigo, filho, mas é assim. – Ntchipoka balouçou a cabeça. – Espero que compreendas.
- Claro que compreendo.

No entanto, chegou na sombra a avó materno de Ananhemia interrompendo a conversa. Cumprimentou o genro e o neto e sentou-se na cama que se achava ao lado dos dois, pondo-se de seguida a conversar com Ntchipoka sobre uma infelicidade que surgira na povoação numa família próxima à sua casa. Passado algum momento, o garoto despediu-se da avó, ergueu-se cerimoniosamente e afastou-se dali para se juntar a uma turma de amigos que brincava animadamente na rua defronte à sua casa.

No entanto, após o diálogo paternal passaram duas semanas sem que a data aprazada para o likumbi chegasse e no decurso destas semanas, Ananhemia manteve-se ansioso em viver de perto as peripécias narradas pelo progenitor. Vezes sem conta, em seus momentos de meditação, o garoto se punha a imagirar-se com o nome que esperava adoptar ao voltar do likumbi e sendo tratado com respeito como consequência da conquista do novo estatuto social na comunidade. Todavia, a ansiedade, por tudo isto, não tardou a chegar ao fim, pois numa certa manhã de quinta-feira orvalhada e de névoa cerrada e rasteira chegou na povoação o nalombwa Kassimuka que de imediato ordenou a concentração dos vali no terreiro da aldeia, onde momentos depois evocou os antepassados pedindo-lhes que o seu trabalho não fosse acometido por situações anómalas e de seguida conduziu os rapazes para o coração da floresta que distava uns três quilómetros da povoação.

Enquanto caminhavam no meio do mato tenebroso ao encontro do local preparado pelos pais dos vali para servir de lipata, os rapazes iam cantando canções desconhecidas entoadas inicialmente pelo nalombwa Kassimuka, que com ajuda de um rabo de leão, excessivamente peludo, ia afugentando os espiritos malígnos ao longo do caminho que conduzia ao destino. Entretanto, quanto mais os rapazes cantavam, mais forte e profundo se tornavam os seus cânticos, chegando-se a ouvir-se na povoação e nas pequenas comunidades de agricultores que habitavam no interior da floresta makonde. Quando as canções acabassem de se entoar, o nalombwa surpreendia os rapazes com novas canções que o homem cantava com ímpeto enquanto os petizes respondiam-o num uníssono piedoso e contagiante, uma vez que os cânticos entoados abordavam a vida que há escassos momentos deixariam para atrás cheios de saudades e recordações eternas.

Nisto, mais em frente o grupo achou uma clareira e seguiu um caminho tortuoso ladeado de campim médio. Após alguns momentos, os vali chegaram a lipata e com ajuda de rabo de leão, o nalombwa fez um circulo mágico no chão em volta do terreno da lipata para impedir o acesso dos animais predadores. De seguida, dirigiu-se ao meio do terreno, local identificado para o ritual e voltou a fazer um pequeno circulo. Quando terminou, pôs os rapazes sentados no interior de uma das palhotas construidas alí e saiu para afiar as navalhas que trazia guardadas no lipeta. No entanto, sentados na palhota escura e mal iluminada pelos raios solares que entravam através de pequenas fendas do telhado coberto de capim, os vali iam espreitando, por entre o espaçamento dos bambús e das estacas que constituiam a palhota, o ambiente externo cheios de curiosidade.

O local escolhido para o likumbi era uma enorme clareira com um quintal de bambú que tinha uma única entrada que também servia de saída. Seis palhota enormes e um alpêndre longo achava-se ali para albergar o nalombwa, os vali e visitantes que tinham a tarefa de trazer a comida da povoação para os rapazes. No meio da clareira uma infinidade de árvores de sombra e frutas emergia dando o local a beleza e a característica de um acampamento. As palhotas na sua totalidade era feitas de material oferecido pela natureza, sendo composto de bambús, estacas, cordas extraidas dos revestimentos das árvores, capim alto e cana de mexoeira. Há escassos metros do likumbi, mais para o lado oeste, corria um ribeiro de águas limpas, cristalinas e doce, do qual os rapazes iriam usar ao longo dos dias da sua segregação.

Entretanto, passado algum momento chegaram no acampamento quatro homens adultos para auxliar os trabalhos do Kassimuka. Conversaram demoradamente com o nalombwa que parecia estar a dar instruções aos homens e depois entraram na palhota onde se achavam os rapazes. Confereciaram com os vali durante alguns instantes e no fim, sairam da palhota cada um agarrando com firmeza o braço de um rapaz e dirigiram-se ao encontro do nalombwa Kassimuka que lhes agurdava cantando no local do ritual munido de navalhas. Assim que os homens se encontraram junto do nalombwa, despiram os jovens e imobilizaram-os. O nalombwa fez uma ronda com os olhos nos rapazes trazidos e, finalmente, aproximou-se a um deles que parecia travesso. Tirou a navalha da cintura, estirou o prepúcio do rapaz e cortou colocando-o na sua boca. O jovem gritou, chorou sem lacrimejar e logo besuntaram-lhe a ferida com uma substancia negra e ardente e conduziram-lhe numa palhota vazia para que não criasse alvoroço nos restantes adolescentes e jovens. De seguida, o nalombwa aproximou-se ao segundo rapaz que soluçava de temor e que por coincidência era o Ananhemia. Estirou-lhe o prepúcio com delicadeza e Ananhemia gritou aterrorizado pelo brilho ofuscante da navalha. Lutou sem sucesso tentando se libertar do homem que o mantinha imobilizado e por fim, cansado e conformado entregou-se ao nalombwa sendo depois cortado o prepúcio no meio de um silêncio tumular. De seguida, tirando as lágrimas copiosamente e sem pranto, o rapaz foi conduzido imediatamente a palhota para se juntar ao primeiro circuncisado. Os garotos que seguiram passaram pelo mesmo sacrifício com o nalombwa a levar para sua boca os prepúcios. Este acto canibal era parte do rito e conferia ao nalombwa Kassimuka um poder sobrenatural desconhecido pelos que lhe rodeavam. Quando todos jovens circuncisaram, o nalombwa tirou os prepúcios da boca e colocou na cabaça, tendo depois levado consigo para a povoação lambendo os lábios ensanguetados.

Ao anoitecer aquele dia, o nalombwa voltou ao likumbi, fez uma enorme fogueira e convidou os vali a se fazerem presentes em volta da lareira. Ao se acharem todos juntos em torno da fogueira que emitia grandes labaredas, o Kassimuka, que era um homem idoso, alto, forte, com o rosto tatuado e dentes afiados à maneira makonde, palestrou para os jovens com sabedoria sobre aspectos do dominio humano e do contexto makonde e no final da sua palestra, contou-lhes uma infinidade estórias divertidas e, no silêncio da noite e no sussurar da floresta, o nalombwa passou-lhes os segredos do homem makonde habilitando os jovens para a vida que lhes aguardava na povoação.

Estas sessões repetiram-se ao longo dos doze meses que os garotos ficaram na floresta segregados do resto da gente da sua comunidade.

Quando os rapazes voltaram a povoação, houve uma festa exuberante durante todo o dia. Comeu-se, bebeu-se e dançou-se ao som dos tambores e as mães dos vali ficaram muito felizes quando das mãos do nalombwa receberam os filhos saudáveis. E como gratidão, as mães ofereceram ao nalombwa kassimuka capulanas e dinheiro, mas o melhor de tudo foi ver a alegrias delas ao verem os filhos sãos e limpos...


Allman Ndyoko
08/04/2008

GLOSSÁRIO

Likumbi – Ritos de iniciação envolvendo rapazes.
Nalombwa – Mestre dos jovens segregados no âmbito de rito de iniciação;
Vali – Alguém submetido aos ritos de iniciação;
Lipata – Local de realização do rito de iniciação;
Lipeta – Mochila feita de pele de animal selvagem;
Vatchungo – Alguém que não passou pelo rito de iniciação.

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