15 de outubro de 2009

A TRAGÉDIA

Numa sociedade actual como a nossa em que as desigualdades sociais são bem salientes, caracterizando-se, fundamentalmente, pela má distribuição da riqueza e o acesso desigual de oportunidades por parte das mulheres, o desespero destas que termine na sua total ou parcial entrega às bebidas alcóolicas e a prostituição compara-se ao suicídio ou a uma vida penosa com consequências drásticas para as pessoas que vivem e convivem com o drama, havendo a necessidade urgente de convocar a consciência da sociedade, principalmente das mulheres, para a reflexão profunda com vista a construirmos uma sociedades sã, responsável, respeitosa aos princípios sociais e, em especial, aos de convivência pacífica.

Este exercício de reflexão vem a mente a propósito da morte trágica da “mamana” Joana, uma anciã que há muito renunciara a luta pela dignidade e vivia entregue às bebidas alcóolicas de fabrico caseiro e que as suas acções alimentavam, de alguns anos para cá, as conversas do bairro, conforme passo a narrar:

“Mamana” Joana vivia num dos bairros periféricos de Maputo, próximo à lixeira da urbe, onde juntamente com outras mulheres do bairro, incluindo crianças, adolescentes e jovens, subiam todos dias, ao alvorecer, o monte de lixo da “bocaria” para recolher plásticos e restos de comida que posteriormente o plástico vendiam a uma pequena empresa de reciclagem montada nas imediações, e a comida “despachavam” para alguns pobres criadores de porcos da zona que se debatiam com o problema de ração para alimentar os animais. Ao entardecer, todos dias “mamana” Joana voltava a casa lúcida, cansada e com uma assustadora trouxa de lixo à cabeça. Logo que chagava a casa, que era pequena e de um quarto, construida com material convencional, produto da comercialização do lixo plástico em sociedade com sua primogénita, punha-se a preparar a refeição, muita das vezes apanhada no lixo, para matar a fome. Depois, tomava banho, trocava a roupa, comia, dava uma vista de olhos ao seu casal de porcos e saia de casa subindo a elevação do bairro até a casa da Mwamuraco, onde na companhia de outras mulheres e homens frustrados afogava as mágoas da vida bebendo “xindere” e conversando, geralmente, sobre banalidades. Ao ficar ébria, começava a soluçar e cambaleante abandonava a sessão de copos descendo o declive do bairro cantarolando canções revolucionárias do partido no poder e deixando denotar aos mirones um certo saudosismo dos tempos passados, que certamente guardava boas lembraças.

Quando chegava ao mercadinho do bairro, que ficava no meio entre a casa da Mwamuraco e a sua, isto ao longo do caminho que lhe conduzia a casa, e que era quase toda ladeada de quintais de espinho de caule de meia altura, parava a marcha. Falava horas à fio com a sua capulana e no fim, deixava-se cair na areia, rebolava no chão maldizendo o marido que lhe abandonara com duas filhas pequenas, que agora se encontram casadas e vivendo em suas casas. Depois de um profundo silêncio erguia-se com dificuldades deixando a capulana despreender-se e cair no chão, expondo a sua intimidade às crianças e aos demais transeuntes. Estas cenas eram penosas, vergonhosas e ninguém incomodava-se com elas, uma vez que eram habituais. Nisto, os dias foram passando um atrás do outro até que uma certa noite, “mamana” Joana regressou de mais uma jornada de copos embriagada a ponto de desconhecer o seu próprio nome.

Era uma noite quente de Agosto. Os vizinhos incomodados pelo calor, a maioria desprovida de aparelhos de ar condicionado e ventoinhas, achavam-se nos quintais das casas a frescar-se e os mais novos brincavam na rua iluminada pelas luzes públicas.

“Mamana” Joana irrompeu o seu quintal deixando cair a porta. Deu passos incertos, tropeçou uma pedra e caiu de queixo. Uma vez que o quintal não se encontrava pavimentado, a anciã ficou com a boca e cara repleta de areia. Ergueu-se sacudindo-se e dando cuspidelas. Riu-se da sua desgraça e no fim, disse:

- Mesmo que tente me matar, nunca vão conseguir...

Deu passos desiquilibrados até a porta da casa, onde abriu-a e entrou falando algo imperceptível. Porém, não tardou a sair. Já parada no meio do quintal, junto ao estendal, vociferou com a voz rouca e olhos semi-abertos:

- Alguém roubou o meu cobertor que hoje deixei estendido no meu estendal. – Soluçou duas vezes e acrescentou falando em changana. - Mas aviso quem me criou esta desgraça que é pecado maior roubar ao pobre.

Deu meia volta e fez movimento para caminhar. Nesse instante, chutou com o pé direito algo macio que lhe pareceu familiar. Inclinou-se para certificar e quando se pôs em pé, caminhou até a porta murmurando com os braços cruzados no peito e segurando o cobertor. Fechou a porta nas costas, girou duas vezes a chave na fechadura e pousou o cobertor na esteira.

O quarto estava semi-escuro. No alto, junto às chapas de zinco, inúmeras fendas serviam de passagem dos raios de luz da iluminação pública permitindo, após a habituação dos olhos, visualizar as bagatelas da casa.

No entanto, “mamana” Joana apalpou uma cadeira plástica de três pés, encostada à parede para não tombar, e tomou um fósforo que rapidamente acendeu um candeeiro que se encontrava na cadeira. Estendeu o cobertor na esteira e deitou-se cobrindo-se a capulana que trazia amarrada ao corpo. Momentos depois, “mamana” Joana adormeceu deitada de barriga.

Passado algum tempo, virou-se deitando-se de costas e quando ia voltar à posição inicial, chutou a cadeira vigorosamente e o candeeiro tombou em cima da capulana que cobria. Rapidamente, o petróleo e a chama espalharam-se por cima da anciã e por tudo quanto era objecto.

Volvidos alguns minutos, grandes linguas de fogo acompanhadas de faúlhas intermináveis e uma fumaça espessa despertaram a atenção dos garotos que brincavam na via pública, que imediatamente trataram de alertar aos mais velhos da vizinhaça. Porém, era tarde! O fogo com toda sua fúria havia consumido tudo na casa em pouco tempo, e, “mamana” Joana não escapou das investidas das labaredas; morreu carbonizada tentando escapar-se pela porta trancada.
Allman Ndyoko
04/10/2009 Vocabulário

Xindere – Aguardente em lingua changana, falada no sul de Moçambique.
Bocaria – Lixeira, aterro.
Manana – Mamã ou mãe em lingua changana.

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