15 de outubro de 2009

A TRADIÇÃO


Uma onda gigantesca desfez-se vigorosa e ruidosamente na borda do mar e espalhou-se até a vegetação, molhando e espantando alguns banhistas incautos. Ao regressar às águas verdes e transparentes, a onda gerou um infindável tapete de espuma, com bolhas de tamanhos diversos, que rapidamente se diluiu na imensidão do mar sob o olhar fascinado dos banhistas, que manchavam a areia branca da praia de tons multicolores formando sombras incontáveis como se se tratasse de crocodilos, na margem de um rio, na hora do banho solar.

No meio de vozes barulhentas misturadas ao som característico do mar, Ruquia caminhou descontraida na água que lhe chegava aos joelhos, chutando-a e provocando em si um andar defeituoso próprio de quem se atreve a andar na água com chão rochoso, escorregadio e acidentado. Enquanto caminhava ao encontro da orla marítima, molhada da ponta dos cabelos aos pés, aqui e acolá via-se gente banhando nas águas do mar, bronzeando-se ao sol, conversando, brincando, jogando a bola na areia da praia, andando de bicicletas e motociclos no asfalto que ladeia a praia do INOS. Já no limiar do mar, Ruquia parou. Passou a mão no rosto enxugando gotícolas de água que lhe salpicavam e prosseguiu a marcha de costas ao mar, silenciosa e feliz com a vida. Caminhou na areia molhada e pegada e uma dezena de metros antes de alcançar a amiga Muanassa, que lhe aguardava deitada de costas, com os olhos presos no céu infinito, esboçou um sorriso sedutor para uns adolescentes que lhe devoravam com os olhos e mais adiante acenou a mão para uns petizes que punham em prática a imaginação erguendo castelos de areia no chão molhado e de cor de chá com leite. Continuou a caminhar despreocupada serpenteando o corpo, bamboleando as nádegas e coxas guardadas numa bela capulana transparente e os seios túrgidos presos por um lenço floreado que atravessava horizontalmente o peito terminando nas costas atado com firmeza. Enquanto andava subindo o declive que começava na estrada asfaltada e terminava no limiar do mar, Ruquia ia ouvindo o desfazer violento das ondas e o ruido do desaparecimento em série da espuma, que se igualava a um refrigerante regado ao chão.

Instantes depois, deixou-se cair na areia ao lado da Muanassa.

- Pensanto na vita, não é mana Muanassa? – Interrogou Ruquia com um tom de gozo.
- Acertaste minha amica. – Respondeu Muanassa brozeando-se ao prazer insaciável do sol, que teimosamente derramava os seus raios sobre a cidade. Após uma pausa, acrescentou. – Estou a tentar imaginar o que será da minha vita quanto na próxima semana casar-me com o velho que meus pais amostraram-me a fotocrafia.
- Não pote ser, Muanassa. – Protestou Ruquia limpando areia colada nas costas dos braços. – Onte você viu isso, pá? Se fosse eu minha amica não aceitava, te tico.

Enquanto as raparigas dialogavam, as palmeiras, perfiladas nas laterais da estrada que acompanha os contornos do acidente geográfico da praia, emprestavam a zona uma beleza singular e bailavam ao sabor do vento sussurando como se celebrassem a esbelteza das meninas e protestassem a penosa decisão dos pais da Muanassa, desta casar-se com um homem mais velho e, para o cúmulo, um velho que nunca viu e nunca se comunicou.

- O que tu queres que eu faça, amica? – Inquiriu Muanassa triste.
- Foge pra longe, muito longe mesmo onde ninquém da tua casa pote te encontrar.
- Não tá facer isso. – Disse Muanassa olhando nos olhos da sua interlocutora. Virou-se para estender-se de barriga e depois, prosseguiu falando baixo. – Meu pai nunca ia me pertoar e minha velha potia morrer de descosto.
- Então, o que preferes, minha amica?
- Não sei.
- Tens que saber. – Insistiu Ruquia visivelmente agastada com a situção. – Tu não potes preferir viver de descosto tota sua vita... tuto porque não queres macoar teus pais.
-Sei. – Balbuciou Muanassa denotando desgosto e um ar depressivo.

Houve silêncio, durante o qual Muanassa voltou a virar-se ao céu respirando fundo e apoiando-se aos cotovelos, ergueu a cabeça e o tórax deixando o olhar perder-se na imensidão verde e azul do mar.

Ao entardecer aquele dia, as raparigas voltaram a casa e o estado de espírito da Muanassa não mudou. Mostrava-se angustiada, abandonada pelo mundo, arrependida de ter nascida mulher numa comunidade ecessivamente tradicional como a que vivia, sem força para lutar e com desejo de dar um sumiço a si naquele mundo amarrado ao passado. Nisto, os dias que se seguiram Muanassa passou-os solitária, infeliz e pensativa. Este estado de espírito contrastava-se ao do pai, que achava-se feliz e orgulhoso com a cerimónia de desvirginação da filha que se avizinhava e o consequente casamento, enquanto que a mãe parecia sentir compaixão pelo que a filha iria passar. Para ela a cerimónia de “arrussi” até lhe oferecia um certo gozo, mas o casamento da filha com alguém desconhecido e muito velho causava-lhe, de certa forma, um grande sofrimento.

Entretanto, um dia antes da data aprazada para a festa de “arrussi”, chegaram na casa dos pais da Muanassa parentes vindo de Chuiba, Murebuè, Maringanha, Gingone, Mahate, Mussanja, Metuge, Paquitequete, enfim, gente de todos quadrantes da baia de Pemba, todos ávidos em testemunhar a cerimónia de “arrussi” da “nuno” Muanassa. Trouxeram galinhas, cabritos, ovelhas, mapira, mandioca seca, arroz de casca, capulanas, brincos, colares e anel de ouro para presentear Muanassa.

Nesse dia, em frente da casa dos pais da Muanassa, os homens ergueram um grande alpendre de palha de coqueiro e mais tarde ocuparam-se a esfolar quatro ovelhas para a festa, enquanto algumas mulheres pilavam e escolhiam arroz em peneiras médias feitas de bambú e outras preparavam massa de trigo para a feitura de bolos. Já Muanassa, encontrava-se fechada no quarto a receber de mulheres idosas instruções demoradas da cerimónia de “arrussi”.

Ao anoitecer aquele dia, avó Maimuna entrou no quarto da Muanassa, onde preparou uma cama casal com lençois brancos para a colheita da prova da virgindade e de seguida saiu para conferenciar com uma outra anciã que na hora de “arrussi” esconder-se-ia debaixo da cama e no fim do acto sexual, sairia ululando com os lençois manchados de sangue, resultante do rompimento do hímen, anunciando aos demais a consumação de “arrussi”. Depois de algum tempo, avó Maimuna entrou novamente no quarto da Muanassa e, após um breve diálogo cerimonioso, a avó introduziu os seus dedos experientes na parte íntima da neta. Quando confirmou a presença intacta do hímen, a velha saiu ululando energicamente e as mulheres que se encontravam no quintal atarefadas, acudiram ao sinal respondendo com demorados ululos e aplausos de satisfação.

A noite prosseguiu animada e com toda agente atarefada: as mulheres na culinária e os homens nos preparos finais do alpendre que receberia os convidados ao alvorecer o dia seguinte.

No entanto, Muanassa desesperada estirou-se no soalho do quarto e começou a chorar vertendo lágrimas copiosas e de revolta. Algum tempo depois, ergueu-se com os olhos inchados e vermelhos. Limpou o rosto com uma das capulanas que lhe envolvia e saiu do quarto dirigindo-se ao banheiro que ficava no canto esquerdo do quintal de bambú. Ao chegar, vigiou rapidamente o movimento e o nível de distracção das pessoas. Abriu uma fenda entre os bambús do banheiro, atravessou cuidadosamente para o quintal vizinho e, sem olhar para atrás, empreendeu uma fuga espectacular com o destino ao farol da praia do C.T.T.

Momentos depois, atravessou as últimas casas do bairro de Ingonane segurando as bordas das capulanas e correndo ofegante. Descreveu a vedação de arrame farpado do C.T.T e próximo ao farol e crematório dos Indús, desviou a direita parando exausta por cima de uma grande rocha de origem vulcânica e com saliência ao mar, emergida junto à orla marítima. Soluçou durante muito tempo e depois manteu-se serena olhando para a escuridão da noite.

O mar estava cheio, revoltado, com ondas gigantescas e ameaçadoras que constantemente desfaziam-se junto às rochas espalhando às águas até ao asfalto. O farol verde de Ulonto, na outra margem da baia, piscava rápida e estranhamente como se quisesse revelar algum enígma quem, naquele instante, passasse junto ao mar.

Nisto, encorajada pela raiva e decepcionada com o destino que a vida lhe reservara, Muanassa fechou os olhos, juntou as mãos nas costas e, do alto da rocha, lançou-se ao mar revoltado, desaparecendo, imediatamente, na escuridão da noite.

Dias depois, um cargueiro grego que ia atracar ao porto da cidade avistou o corpo da Muanassa flutuando no mar e a tripulação do navio tratou de resgatá-lo. Muanassa tinha a testa rachada, lábios, nariz, orelhas e alguns dedos roidos pelos peixes. Porém, a sua formosura e elegância mantinham-se leais e mesmo morta, os marinheiros olhavam-a com merecida admiração.

No entanto, no mesmo dia o cadáver foi entregue à familia que, por ser maometana, naquele dia mesmo, tratou de enterrá-lo no cemitério familiar, na zona de Maringanha.

Allman Ndyoko
05/10/2009

Vocabulário
“Arrussi” – cerimónia de desvirginação que normalmente culmina com o casamento;
“Nuno” – Mana nas linguas macua e kimuane, faladas no litoral de Cabo Delgado, norte de Moçambique.
C.T.T – Correios, Telégrafos e Telefones.

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